Por Arzírio Cardoso
O silêncio não é uma ausência. O silêncio significa. E por acreditar ser isso ponto pacífico, conhecimento universal adquirido conscientemente ou simplesmente intuído, não vou tentar acrescentar aqui algum novo conceito às teorias do silêncio, como quem levasse à fonte um copo d’água e inserisse definições ao que já é percebido, em silêncio, por todos. Creio valer mais a pena contar que, quando criança, eu morava numa casa de onde era possível ver, numa elevação uns 300 metros adiante, um campinho de futebol. De modo que, quando alguns meninos apareciam por ali jogar bola, eu ficava de longe, sentado, assistindo.
Já ali começava a verdejar a planta cujas raízes penetrariam cada vez mais fundo o solo do silêncio e da solidão, em tudo divergente do solo do alheamento e da ausência de companhia, embora não poucas vezes já os tenham confundido e os tomado por iguais.
Mas ia dizendo que eu ficava por ali, sentado na varanda da casa da vó, observando o jogo, os dribles, as pernadas, as faltas apitadas no grito pela ausência de apito e de juiz, as brigas, as reconciliações. Mas não só. Sendo então já um protótipo do que viria a me tornar, não havia meios de minha atenção ser direcionada apenas para as partidas (canelas) de futebol. Até porque, aos cinco anos de idade, é bem provável que eu não conseguisse apreciar, com a ênfase necessária, toda a habilidade futebolística dos titulares ou o esquema tático elaborado aos gritos durante o jogo, assim como é também bastante plausível que eu não sentisse nenhuma comoção especial por estar presenciando, ainda que à distância, aquele clássico dos clássicos do campeonatinho da várzea ribeira: os de camisa contra os sem. O que de verdade me enchia de fascínio eram os sons. E, antes deles, o silêncio. Porque quando a bola era chutada, o som do chute levava algum tempo para viajar os 300 metros interpostos entre nós e chegar aos meus ouvidos, causando-me grande perplexidade e estupefação, esses sentimentos que nos acometem quando nos encontramos diante de fenômenos que não podemos explicar. Como é que dois eventos obviamente simultâneos podiam ocorrer um depois do outro? Foi experiência realmente intrigante observar pela primeira vez a realidade funcionando dessa forma tão exótica, testemunhar a instauração de um paradoxo que estilhaçava as expectativas construídas com esmero ao longo de meus cinco anos. Quando o veterano empirismo diário já me havia ensinado que aqueles dois deveriam andar sempre juntinhos, eis que o casal aparece apartado, assíncrono, imagem de um lado, som do outro, como se o som, subitamente cindido, passasse a vagar por aí, solto pelo mundo, sem rumo e sem par.
E foi assim que o silêncio e o futebol à distância ensinaram-me física, aspecto incontornável da vida que à época não ostentava a carranca de tal circunspecto nome, sendo reconhecida simplesmente como mágica – ou poesia.
Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (2º lugar)