Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por PH Gomes

Lá pela zona do Mangue, as esquinas e balcões dos botecos exclamavam as virtuosidades do Necropolitano Football Club. Sim, o time de coveiros, marmoristas e gente que lá trabalha entre túmulos e flores do cemitério do bairro de Irajá. O Necropolitano era o time a ser batido no campeonato local, invicto a 55 jogos.

A boataria buscava explicar a mística em torno do time: os mais velhos diziam, com propriedade, que o treineiro Chico Escorpião ritualizava a preparação física e técnica do time no limite tênue entre o sagrado e o profano. Anualmente, entre o natal e o carnaval, Chico Escorpião preparava seus times com essências e defumadores oriundos do arbóreo cemiterial. Os anciões afirmavam categoricamente que a complexidade dos rituais de Chico envolviam o passado e o futuro dos mortos e suas possibilidades de tomar o corpo dos atletas em dias de jogo.

Naquele dia, era estreia do Necropolitano, era março de um ano qualquer. Início de temporada no Departamento Autônomo, 55 jogos invictos e, na esquina da Avenida Ubirajara com Amâncio Bezerra, a banca do jogo do bicho era um mar de apostas no grupo 14 do gato preto. O apontador da banca não dava conta da aglomeração na esquina. Todos acreditavam na invencibilidade dos coveiros.

O adversário do Necro era o time dos Beneditinos, com forte ligação paroquial. Em jogo morno e pouco inspirado de quase 80 minutos, o placar
ostentava empate de 1 x 1. Gols de Leco da Quadra 4, zagueiro do Necro, a favor e contra. Desejosos pela vitória, os Beneditinos amassaram no final do jogo. O gol do desempate parecia próximo. Questão de curto tempo. Seria o dia da vitória do sagrado!

Aos 53 minutos do segundo tempo, Juarez, volante voluntarioso do Necropolitano, pareceu engrossar o bigode e em passadas largas, dominou o meio de campo, arrumou a equipe e, de forma guerreira e misteriosa, impediu a transformação de um lance capital do adversário em gol da vitória. Em contra-ataque veloz dos Beneditinos, Jorge Coroinha avançou pela esquerda, driblou três oponentes e cortou para o meio da grande área com o chute engatilhado. Na primeira tentativa, chute travado. Na segunda, a bola é levemente tocada com o peito do pé e seguindo uma linha objetiva na direção do ângulo superior direito do gol. Jorge nem olhou para as traves, virou as costas, já correu para a torcida. O restante da equipe olhava atônita para a retaguarda do goleiro Mica Leão, arqueiro do Necro, já batido no lance: surpreendentemente, o volante Juarez apareceu entre as traves, num pulo ordeiro, impedindo o golaço de Jorge Coroinha com uma cabeçada frontal, com cara de fome, endiabrado. Um lance plástico, porém, misterioso: com exceção de Jorge Coroinha, todos em campo viram Juarez e seu rosto inexplicavelmente mascarado obstruindo a meta do Necropolitano.

Automaticamente, todos olharam para Chico Escorpião na lateral do campo. Chico, com os punhos cerrados, junto aos olhos, apenas balbuciava: salve, Dario! A torcida enlouquecida bradava: Necro! Necro, Necro, Necro! A partir dali, eram 56 jogos invictos e alguma história sobrenatural para contar. Mas quem seria aquele espírito mascarado a tomar o corpo do volante Juarez? Que a eternidade crie histórias justas para manter viva a memória do Necro de Irajá!

1 O presente texto é ficcional e se utiliza da existência de um time do cemitério de Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro/Brasil. A equipe jogou competições locais do futebol amador nos anos de 1970 e sua praça de esportes era o campinho de Vista Alegre, nas proximidades do cemitério. Além disso, o texto traz uma homenagem ao ex-jogador Dario Dubois, zagueiro atuante nas divisões de acesso do futebol argentino nos anos de 1990 e 2000 e conhecido por jogar mascarado.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (3º lugar)