Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Viviane Ferreira Santiago

Em 2004, durante a gravidez do João, eu já sabia: este garoto vai ser bom de bola. A forma fina e certeira com que chutava em cheio meu rim direito já previa: lateral-esquerdo. Daqueles de pontapé rápido e exitoso. Dono do chute que parte como um raio, atravessando o campo até os pés do atacante, que, de cara com o gol, solta o grito e corre para o abraço.

Imagine um jogo, só que este é de dados biológicos, em que o acaso determina o resultado. Assim é a Síndrome de Down, um capricho da genética que surge durante a divisão celular do embrião. Nas células humanas típicas, há 46 cromossomos organizados em 23 pares perfeitos. No entanto, em indivíduos
com Síndrome de Down, o destino adiciona um toque a mais: um cromossomo extra, ligado ao par 21, totalizando 47 cromossomos. João nasceu prematuro, e a junção das condições nos cerceou de idas e vindas aos hospitais da cidade de São Paulo.

De tanto lutar pela vida, João ganhou a gana por ela. Queria ser artista, astronauta e bombeiro. Isso, até assistir pela primeira vez a um jogo de futebol de várzea no campo do Jardim Cruz Alta. Partida acirrada, Primus versus Favela Futebol Clube.

João não entendia as regras e torceu para os dois times, vibrando a cada gol, a cada drible. Eu, rindo à toa, feliz em ver a felicidade genuína nos seus olhos pequenos e arredondados.

Depois desse jogo, viramos torcedores assíduos do Favela. João aprendeu o nome de seus jogadores preferidos, enquanto eu os confundia sistematicamente toda vez que cortavam os cabelos.

João, agora, queria ser jogador de futebol. Não de um time consagrado, cheio de estrelas correndo pelo campo. Queria a várzea. Porque na várzea é tudo homogêneo, e João ri e comemora alto em todos os gols. Ganha camisas das equipes e fica para o churrasco, onde come tulipas de frango, suas prediletas.

É um lugar daqueles que faz a vida da gente ser feliz por mais tempo.

O treinador do Favela, o Juarez, contou para o João que havia um time lá no Rio de Janeiro, o Realengo, cujo técnico era cego. E que no ano que vem, se tudo desse certo, queria formar um time muito especial, onde João seria o capitão.

João não deu muita importância à promessa, mas enlaçou sua mão com a do Juarez como quem sela um pacto.

O time especial do Favela nunca aconteceu; faltou apoio e sobrou preconceito de muitos lados.

Chorei escondida no banheiro, tamanha foi a frustração de saber que a  mãe dos outros garotos queria fazer do João o mascote do time. Logo o João, que, na verdade, tinha a melhor direita de toda a formação e o coração mais bonito também.

Fui consolada por um reserva que cheirava a suor e desodorante Rexona, cujo nome eu nunca conseguia lembrar, mas que sorria largo quando via o João. Ele dizia que também tinha um irmão que carregava o cromossomo do amor.

João cresceu e fez administração. Todo domingo, ele me paga um sorvete na saída do jogo. Já aos sábados, ele não vai mais às partidas. Aos sábados, João visita a namorada, Camille.

E nessas horas, quando João está fora, fico pensando no quanto a várzea salvou inúmeros dos nossos dias. Calculando quantos sorrisos e esperança cabem em 90 metros de terra batida.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (1º lugar)