Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Leandro Marçal Pereira

“Lembra que eu jogava aí?”, meu pai fez a pergunta retórica, apontando para a chamativa entrada do condomínio, com incontáveis prédios alinhados de forma organizada. Difícil enxergar os últimos andares olhando para cima, de tão altos os “empreendimentos”, como dizia o folder entregue pela moça no semáforo vermelho.

Voltávamos do mercado com as compras para o almoço de domingo em família. Massas, molhos e temperos entregues ao banco de trás. Na frente, meu pai voltava o olhar nostálgico para o condomínio de nome gringo e chique.

“Era um campo grande, o maior campo de várzea da cidade. Naquela época, ninguém nem sonhava que tudo ia virar prédio. Quanta gente será que mora aí?”, disparou outra pergunta retórica.

Tenho lembranças daquele tempo distante. Domingo de manhã, acabava a Fórmula 1 e meu pai me botava na garupa da bicicleta. Atravessávamos o bairro, ele cumprimentava um vizinho, provocava o rival da rodada, me deixava à beira do campo bebendo refrigerante e comendo salgadinho. Pedia para eu prestar atenção nele. Da zaga, dava um jeito de prestar atenção em mim quando seu time ia para o ataque. Qualquer incidente comigo e minha mãe lhe dava um sermão interminável, mesmo na frente da vó, dona de almoços como o de hoje.

“Dá uma olhada aqui, pai. Tem área de lazer, quadra de society, de tênis, academia, salão de festas, churrasqueira. Dá pra passar a vida inteira sem sair daí”, lhe entreguei o tal folder.

“Principalmente pra quem trabalha de casa, igual a você. Mas é estranho. Parece frio, distante. Uma cidade dentro da cidade. Será que os vizinhos se conhecem?”, emendou mais uma pergunta retórica.

Por ali, vi pouca gente a pé. Carros entrando, carros saindo, motos chegando com entregas. Mal se vê o porteiro atendendo o interfone, recebendo entregas, liberando visitantes. Para o portão abrir e fechar, o esforço é eletrônico.

Me senti na beira do campo. Sem permissão para entrar enquanto o jogo não acabasse, como meu pai alertava. Meio assustado com zagueiros peitando atacantes adversários, mas raramente chegando a uma briga mais feia. Comemorando os gols com os mais velhos. Nunca marcados pelo meu pai, é verdade. Suas histórias na várzea ficavam mais saborosas quando contadas no almoço.

“Diz que a briga pelo terreno foi grande. Quando o dono morreu, a família não quis nem saber, vendeu tudo pra imobiliária. Ganharam uma grana”, comentei.

“Ganharam uma grana. Mas eu gostava do campo”, meu pai respondeu. A luz verde do semáforo acendeu, o carro de trás buzinou, olhei para frente e acelerei.

Seguimos calados pelo restante do caminho. Depois do almoço, família ainda à mesa, meu pai contou a história de uma final disputada onde hoje está o condomínio. Disse que deu empate e ele cobrou o pênalti do título. Não me lembro disso, mas confirmei a versão antes de uma nova pergunta retórica.

 

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)