Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Paulo Neumann

Ribamar era craque. A pouca idade escondia a habilidade que o garoto tinha na perna canhota. Ele fazia o que queria com a bola nos pés. Jogando, tinha na cabeça a certeza do que fazer a cada toque.

Só uma coisa o preocupava dentro de campo. Pobre desde sempre, nunca teve uma chuteira, e sempre desfilou sua habilidade de pés descalços, enquanto que os adversários riam e debochavam, pisando de propósito e lhe causado doloridos ferimentos nos pés.

Sua mãe, Dona Lara, nada podia fazer. Costurava pra fora com a intenção de pagar uma faculdade para o garoto e vê-lo doutor. Todo centavo era poupado. Mas Ribamar tinha outros planos. Desde que ganhou uma bola de meia aos três anos, jamais desgrudou dela. Tudo ficava pra depois, até os estudos. Não havia um dia sequer que Dona Lara não pegava Ribamar no flagra pulando a janela do quarto para ir jogar bola. De onde ela estivesse, retirava sua sandália, gritava o nome do menino e arremessava mirando seu filho. Nove entre dez disparos encontravam o alvo. Em precisão, Ribamar tinha a quem puxar.

A final do campeonato da Rua A deveria ser motivo de alegria para Ribamar, mas Dona Lara só via o filho triste nos dias que antecediam o grande evento. Ao questioná-lo, dava voltas e desconversava. No fundo, ela sabia: todos estariam de chuteiras na grande final, menos Ribamar.

Decidida a ajudar o filho, planejou uma surpresa: contou o dinheiro guardado naquele ano e comprou um par de chuteiras sem que Ribamar soubesse e se preparou para presenteá-lo no domingo de manhã, antes do jogo. Ao acordar, pegou o embrulho escondido no fundo do armário e foi até o quarto do filho. A janela aberta denunciava mais uma fuga de Ribamar para o campinho.

Zero a zero, o jogo já se aproximava do fim quando Dona Lara chegou até o local. Usando bengalas devido à idade avançada, tinha feito o trajeto de quinhentos metros com certa destreza. Encontrou um lugar por entre a multidão que se espremia na linha lateral e pôde ver o filho em campo. Ele driblava, corria, mas sempre era atingido nos pés com violência. Todos tinham chuteiras. Pela primeira vez, Ribamar também, mas elas estavam nas mãos de Dona Lara.

O juiz já levava o apito à boca para dar fim ao cotejo quando baixou o braço esperando o último ataque do time de Ribamar. O ponta esquerda correu pela lateral, levantou a cabeça e cruzou com força a bola na área. Dona Lara observou o filho perto da trave direita e não pensou duas vezes: gritou o nome do filho e arremessou as chuteiras em sua direção. A bola passou por toda a extensão do gol. O zagueiro não alcançou, o goleiro pulou em vão e a bola foi em direção a Ribamar, que deu um carrinho esticando as pernas. O dedão do pé em carne viva e sem unhas chegou a resvalar na bola, mas sem forças para desviá-la e passou por ele também.

A pelota já ia saindo pela linha de fundo quando encontrou as chuteiras arremessadas por Dona Lara, que botaram a gorducha para dentro do gol.

De nada adiantou a reclamação do goleiro de que algo fora arremessado em campo. O juiz só viu a bola e um par de chuteiras dentro da meta. 1 x 0, gol de Ribamar.

Dona Lara, pacientemente, esperou a entrega de medalhas, abraçou o filho e falou em seu ouvido: parabéns, pegue suas chuteiras e vamos pra casa. Você tem muito o que estudar.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)