Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Custódio Rosa

Seu Vardevarzio era uma lenda da várzea.

Sua história se perdia nos tempos em que os campos da região eram capoeiras abertas na foice pelos boleiros da região. Formigueiros e cupinzeiros destruídos, pedras arrancadas e o mato baixo deixado como “gramado” até que o tempo e os pés, calçados ou não, fizessem seu trabalho de assentar tudo e sobrar só o terrão. Os gols, montados precariamente com taquaras e bambus, se estilhaçavam quando acertados em cheio nas suas juntas, obrigando depois a um exercício de projeção mental dos dois times sobre a altura da trave. A situação precária das arenas varzeanas acabava sendo inspiração para os nomes de muitos dos times que se formaram, alguns permanecendo ativos e gloriosos até hoje:  Bambu FC, Taquaral, Mata-Cupim, Pula Corgo, Sai Carrapato, Sola Cascão, e o Botas do Judas Futebol e Samba, que depois de anos acabou sendo controlado por evangélicos e mudou para Cruz Dourada Futebol e Reza.

Vardevarzio, que nascido seria Valdevalzio, junção dos nomes dos pais, Valdeli e Edevalzio, virou Vardevarzio por pronúncia caipira do pai e literalidade do escrivão.

Certa vez, em um dos infinitos campos que ajudou a fundar, caiu num rio e quase morreu. A partir dali, nunca mais se aproximou de rio, piscina, lagoa ou mar. Tinha pavor até de poça d’água.

Diferente dos incontáveis veteranos, aposentados e estropiados, que lotavam os bares ao redor dos campos, tomando cerveja e criticando os jogadores atuais, “seu Var”, como era chamado, nunca foi visto chutando uma bola. Muito menos era treinador ou juiz.

Seu caráter ilibado e seriedade inquestionável o faziam ser reconhecido e recebido com respeito e pompa todos os finais de semana, em qualquer dos campos que tinham a sorte de serem escolhidos pela estrela. A rotina, quase cerimônia, era sempre a mesma: cerveja gelada, uns torresminhos, uma mesa na janela do bar na beira do campo. E ninguém para tirar sua atenção.

Ele chamava de “minha cabine”.

E ali ficava, sem ser importunado, acompanhando os jogos, até que algum lance duvidoso acontecesse. A cena clássica: os dois times faziam rodinha em torno do árbitro, gritaria e palavrões, o povo apupando, até que viesse a ordem para o juiz: vai na cabine do “seu Var”.

E lá ia o digníssimo, entre humilhado e aliviado, atravessando o campo em direção à janela do bar onde seu Vardevarzio aguardava impávido. Os gritos e assovios iam diminuindo enquanto o juiz argumentava e “seu Var”, em voz baixa, fazia discretos movimentos com a mão livre, já que a outra segurava o copo de cerveja. Quando, finalmente, fazia um gesto varrendo o ar, dispensando o juiz, havia o veredito. O apiteiro metia o apito na boca, apontava a decisão e tudo estava resolvido.

Seu Vardevarzio, olho de águia e reserva moral.

Com a idade chegando, certas decisões iam ficando confusas, mas todos ficavam sem jeito de contrariar. Por fim, “seu Var” acabou sumindo dos campos.

Muitos acreditam que foi como protesto silencioso pela adoção de sua invenção pioneira por equipamentos e juízes tão modernos quanto despreparados. Ele nunca desmentiu esses rumores, para não apagar a lenda. Mas a verdade é que acabou derrotado mesmo pela ironia do destino.

Com tanto medo de morrer afogado, seu Vardevarzio foi derrotado por uma catarata.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)