Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Pedro Corat

Fabrício se arrastou para fora da cama naquela quarta-feira. O sol mal nascera, e os fantasmas já despertavam. Acordar era ir à escola, sacrifício para o garoto de onze anos de idade. Detestava estar entre os colegas, que só falavam do mesmo assunto.

Sua mãe o esperava na cozinha angustiada por, de novo, não ter o que preparar no café da manhã. O rádio de pilha anunciava a alta nos alimentos, nos remédios. Um beijo e um “vai com Deus” era tudo o que podia oferecer a Fabrício, que saía a contragosto.

No centro da cidade, César circulava no jornal surrado os classificados de empregos. Uma passada de olho na seção de esportes o arremessou a uma vida que não foi, mas poderia ter sido. Jurandir era destaque em uma foto.

Cesinha e Jurandir, a melhor dupla de ataque que o time infantil do Jardim Travessia já conheceu. Tricampeões do Campeonato Amador Municipal, e a oportunidade na peneira da Portuguesa. Jurandir aprovado, Cesinha reprovado. Aquele “não” ecoava até hoje: nos vidros fechados quando pedia dinheiro no semáforo, no estômago vazio.

Também com fome, Fabrício evitava ao máximo o contato com os meninos no portão da escola. Tudo o que se falava era do jogo de domingo, do título engasgado que não vinha há 19 anos, da chance derretendo no ano passado.

– Ei, mano, vai colar domingo?
– Demoro, mano, vai dar nós!
– Se o Cesinha não jogar, né, mó tiriça!
– Vixi, nem fala, ano passado foi embaçado…

O garoto só queria o apito final, tanto das aulas quanto do tal jogo. Não prestava atenção nas tabuadas, tampouco nos pronomes. Todos os dias perguntava à mãe se podia faltar, e ouvia a mesma desagradável resposta.

Enfim chegou o domingo. O tão esperado domingo. A Vila Travessia pintada de preto e amarelo, as cores do time do bairro. Era a final da categoria principal do Campeonato  Amador Municipal, e o adversário era o temido Jardim São Sebastião, algoz na temporada passada.

Os fogos precediam a entrada dos jogadores no campo de terra batida. Entre eles, Cesinha, vestindo a camisa 9. Antes mesmo do hino nacional, Fabrício quis correr para bem longe. Para qualquer lugar onde não houvesse os comentários.

– Se tiver pênalti, não deixa o Cesinha bater!

A tensa partida caminhava sem alterações no placar, e todos se entreolhavam nas arquibancadas com o mesmo pensamento: a famigerada disputa de penalidades, que fez o bairro perder o troféu no último ano e marcou o início do calvário escolar de Fabrício.

Porém aos 42 do segundo tempo, um cruzamento certeiro congelou respirações de todo um bairro e encontrou a testa do centroavante criticado, que pairou no ar e estufou as redes: Vila Travessia 1 X 0 Jardim São Sebastião. 19 anos depois, o auri-negro soltava o grito de campeão.

Entre gritos, abraços e copos de cerveja na multidão, o herói da conquista procurava o único olhar importante naquele momento. E ali estava, em meio à fumaça da churrasqueira. Fabrício engolia o choro e sorria aliviado.

Cesinha o abraçou e falou em seu ouvido: “foi pra você, filho. Pra você”. O garoto tentava disfarçar as lágrimas e só conseguiu dizer: “eu sabia, pai”. Deram a volta olímpica triunfantes, de mãos dadas. Eram rei e príncipe de uma vida que, sim, estava acontecendo.

Fabrício agora estava louco para ir à escola segunda-feira.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)