Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Mateus Ribeirete

Sempre falei pro Davi não ser goleiro, mas se me ouvisse não seria meu filho, né. Agora estamos os dois na semifinal da Suburbana de Curitiba. Frente a frente, na marca do cal. Seguraram o zero a zero muito bem, até que o camisa três dos caras deu mole e me passou o rodo. Quarenta e oito minutos de segundo tempo – isso não se faz. Falei pro Davi que o cara é uma íngua.

A Suburbana é o torneio dos quase: juntam-se os que quase viraram, como o Davi, com os que quase pararam. Meu caso. Ninguém quer desistir do sonho, tendo vivido ele ou não. Uma boa Suburbana sempre garante outro contratinho profissional, e com 37 anos eu sei que ainda tenho lenha pra queimar em qualquer estadual por aí.

Fui artilheiro na Bélgica e na Lituânia. Me amam na Malásia. Com um pouco mais de sorte, teria jogado na Itália. Faltou pouco, muito pouco. Meu empresário já tinha acertado tudo, aí tive azar com o púbis. Hora errada.

Porém, Deus quis assim e sou muito grato. Fui muito cedo pra fora, e naquela época não tinha vídeo, empresário, assessoria igual hoje. Se surgisse agora eu tenho certeza que estaria na seleção, com esse monte de pereba na Série A. Até cheguei a fardar na primeira divisão, mas pouco tempo. Tinha acabado de voltar da Europa. Cheguei machucado e não me dei bem com o palhaço que treinava o Sport. Saí seis meses depois e me firmei na Série B. Isso faz nem cinco anos.

Em algum momento, depois de disputar três divisões diferentes do Paulista, reconheci que era hora de brincar na Suburbana. Um parceiro que jogou comigo no Noroeste já tinha cantado essa bola.

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O futebol me deu tudo. Me deu inclusive o Davi, justamente na Bélgica. Sempre falei pra mãe dele: que seja tudo, menos goleiro. A gente era muito novo e foi uma fase difícil; graças a Deus passou. Logo o Davi me acompanhava pra cima e pra baixo. Depois dele vieram a Liziane, na Lituânia, e a Valentina, na Malásia. Nossas princesas.

Tinha talento, o Davi. Habilidoso de tudo. E sempre foi alto. Mais alto que eu, o corno. E tá aí o problema: em algum rachão do sub14, faltou goleiro. Todo mundo conhece essa história, né, mas logo com o meu filho? Sacanagem. Destruiu e não deixaram sair mais.

Com 19, ele ainda pode virar. Sei que pode. É um menino bom, tem cabeça boa, terminou a base no Operário. Se tem uma coisa que aprendi é que o futebol é maluco. Um dia você é rei num estádio lotado, no outro é confundido com o roupeiro da várzea e vice-versa.

A gente nunca tinha jogado contra, e vou te contar que é uma sensação estranha. Por mim terminava empatado com ele pegando cinco pênaltis. Ainda mais porque tem olheiro do Nova Iguaçu aqui hoje (ficamos sabendo no
vestiário).

O problema é que surgiu esse pênalti, né. E seria uma vergonha eu não bater – sou o mais velho e, sem falsa modéstia, o melhorzinho no meio dessa garotada. Não posso fugir da responsabilidade, ainda mais depois que o camisa quatro me tirou pra aposentado. Nunca fugi, e não vai ser agora. Sou homem de princípios.

O problema é o Davi. Meu filho. O futuro do Davi. Olho nos olhos dele e  reconheço a concentração. É quase um sorriso. A mãe dele berrando atrás do gol, coitada. Se eu tô assim, imagine ela.

O problema é que, nessas horas, os princípios balançam.

Mas aliviar pro goleiro, meu amigo?

Eu não.

A mãe dele que chore.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)