
De Bibiana de Borba Lucas
Meu avô morreu comemorando um gol anulado. Mais do que isso: meu avô morreu comemorando um gol que valia o título inédito da Libertadores. O gol da glória eterna – para ele, literalmente. Um gol que, nos limites terrenos da existência, porém, não valeu.
Disso só viemos a ter certeza sete minutos depois, quando já corríamos pelo pátio do estádio à procura de uma ambulância. “O VAR anulou”, comentou um vigia para outro enquanto eu e meu pai somávamos braços para fazer o transporte daquilo que – a despeito do sorriso que se mantinha intacto em seu rosto mesmo depois da infame notícia – esperava-se ainda não estar reduzido a um corpo.
“Pra que tanta demora?”, o outro vigia respondeu, quando o cronômetro já marcava sessenta do segundo tempo, e sabe-se lá quantos acréscimos mais o árbitro daria. Justo: havia que se descontar a invasão, não só do torcedor que quase chegou às vias de fato com o outrora artilheiro cujas bolas para fora agora já somavam a idade de meu saudoso avô, mas também de um cachorro vira-lata, cuja captura levou ainda mais tempo do que a do humano insurrecto, justificando os olés que se espalharam pela arquibancada assim que o animalzinho driblou o segundo, o terceiro e o quarto seguranças, só não entrando com bola e tudo porque tinha humildade em gol. Isso sem falar na cera do time adversário e nas vezes em que o juiz foi soterrado por um grupo de homenzarrões reivindicando em portunhol a marcação de pênaltis, ou no mínimo que fossem distribuídos uns quantos cartões de cores variadas. Meu avô morreu durante um típico jogo de futebol na América do Sul, graças a Deus.
Pois não fosse a instituição Futebol Sul-americano®, meu avô jamais alcançaria a façanha de se tornar campeão enquanto eu, mero mortal a quem ele ensinou o amor pelas cores de sua camisa, continuo
a habitar o inglório destino de não o ser. O gol, afinal, tinha saído no apagar das luzes da partida; não havia tempo para mais nada, muito menos para cogitações sobre os quinze milímetros de ombro que por capricho se posicionaram à frente do marcador no momento em que a bola era cruzada. A parada cardíaca, de sua vez, não decorrera da emoção, como se supunha, mas devido a um processo inflamatório preexistente que, de um jeito ou de outro, desembocaria na obstrução sanguínea que faria cessarem os batimentos exatamente aos cinquenta e três minutos da etapa complementar. Isso, é claro, se o jogo a tanto se estendesse.
Foi um velório alegre. Diante do homem cuja tranquilidade no semblante emanava todo o descanso e toda a paz que podem caber num R.I.P., entoamos os mais célebres cânticos da torcida para garantir que a verdade jamais lhe viesse à tona. Brindamos, então, à catimba, à malandragem, à desordem e aos cachorros vira-latas. Um deles, de cor caramelo, surgiu não sei de onde para acomodar-se sob uma coroa de flores, passando a observar o movimentar das pernas que iam e vinham ao encontro do caixão, num ritmo constante – quase como o daqueles homens que nunca se cansam de correr atrás de uma bola. O cenário estava propício a uma sequência de dribles, ainda mais agora que as pernas pareciam sincronizar-se em marcha na direção de um buraco de terra para lá se fazer encerrar mais uma partida. Olé.
4º ao 20º lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025


