
De Antonio Gomes de Jesus Neto
Após degolar o último frango do dia, Souleymane limpou a faca, lavou o rosto, vestiu sua camisa vermelha do Liverpool (com Sadio Mané inscrito às costas), pegou suas chuteiras e rumou para o campo de terra do outro lado da estrada. Dois anos antes, alimentando o sonho de trajar essa camisa em Anfield Road, ele havia deixado o aeroporto de Dakar (onde jogava nas categorias de base do Jaraaf) com destino a Quito. Como muito de seus conterrâneos, Souleymane soube de uma isenção de vistos entre Senegal e Equador, uma porta de entrada interessante (e inesperada) para seu sonho de jogar futebol no Brasil. A partir da capital andina (mas não sem antes assistir a um LDU x Emelec a 2.800m de altitude), ele adentrou o Peru e chegou ao Acre, de onde seguiu viagem (de ônibus) para São Paulo na esperança de arrumar um teste no clube que leva o nome da cidade, o mesmo onde jogou o também senegalês Iba Ly. Em pouco tempo, porém, Souleymane percebeu que jogar bola no Brasil não era tarefa simples, e acionando suas redes familiares, esticou seu percurso latino-americano ainda mais ao Sul, disposto a vender óculos escuros e caixas de som portáteis nas praias de Mar del Plata. Obviamente, o futebol nunca saiu do seu horizonte, e na ferrenha rivalidade entre Aldosivi e Alvarado, escolheu o lado mais fraco – e potencialmente mais acessível ao seu sonho. Jogou por seis meses no sub-20 do Torito, mas na terra de Messi e Maradona percebeu que mais difícil do que ser jogador, era ser negro no continente de Pelé e Obdulio Varela. Nesse desencontro profissional e racial, Souleymane voltou algumas casas e se reposicionou, estabelecendo-se no interstício entre o futebol, a sobrevivência, a bacia do Prata e a cordilheira dos Andes. Como muçulmano, estava apto a realizar cortes halal em um matadouro de frangos para exportação no interior do Paraná, onde se instalou há mais de um ano. Todos os dias, após abater cerca de 8.000 galináceos, Souleymane limpa sua faca, lava o rosto, coloca sua camisa vermelha do Liverpool, pega suas chuteiras e ruma para o campo de terra do outro lado da estrada. Lá, ele encontra não apenas seus patrícios, mas também outros muçulmanos africanos oriundos de Gana e da Nigéria, bem como funcionários da limpeza paraguaios e bolivianos (e mesmo alguns brasileiros moradores dos arredores), para uma partida teoricamente amistosa, mas disputada com a rispidez inexorável ao cotidiano violento a que estão submetidos. Terminada a pelada, Souleymane ajoelha-se e beija o solo barrento onde as aves que ele abate ciscam ao longo do dia, e após fazer sua ablução noturna, junta-se aos seus camaradas no bar do Libertador: ele com seu refrigerante, alguns compartilhando um tereré, e a maioria sorvendo uma cerveja gelada enquanto o futebol rola solto na TV presa à parede. Às vezes o Liverpool está em campo para não deixar seus sonhos (cada vez mais distantes) morrerem. Às vezes é o Corinthians que chacoalha o coração dos trabalhadores do oeste paranaense. Mas nunca, para desgosto de muitos deles, se transmitiu um jogo do Jaraaf, Olimpia ou The Strongest naquele espaço. Veneno remédio, o futebol ilude, frustra e explica, mas sobretudo ajuda a seguir caminhando, pelas pulsantes artérias da ladinoaméfrica.
1° Lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025


