
De Cassio Giorgetti
Em 1980, meu pai, engenheiro civil, foi enviado pela construtora em que trabalhava para comandar um novo projeto, a obra de um edifício de nove andares no centro da cidade. De Buenos Aires. Levou todo mundo com ele, obviamente. Minha mãe, eu, que acabara de completar oito anos e a caçula, de dois. Morávamos em São Paulo e senti o golpe da mudança repentina mais do que o restante da família. O idioma, a cultura, o clima, a comida, eu odiava tudo que fazia parte da minha nova realidade.
Meu pai alugou uma casa num bairro chamado Villa Urquiza, lugar tranquilo, arborizado e com forte presença da colônia judaica. Fui matriculado em um colégio público, o único que havia na região. Os meses foram passando, a vida seguindo e as dificuldades iniciais de adaptação se superando. Não demorou para que eu começasse a fazer amigos e o mais importante deles era Ignacio. Estudávamos na mesma classe e tínhamos em comum, entre outros gostos, a paixão pelo futebol. Ele sabia muito pouco sobre o meu time de coração, o Palmeiras, e eu menos ainda sobre o dele, o Ferro Carril, também conhecido como “Verdolaga”, clube com sede no bairro de Caballito, coincidentemente, muito próximo à obra onde meu pai trabalhava.
A preferência de Ignacio por um time menos popular do que River, Boca ou Independiente se dava por uma razão particular. Seu irmão mais velho, Carlos Alberto – Toto, nos círculos mais íntimos – estava, aos 18 anos, prestes a se tornar um jogador profissional do Ferro Carril. Zagueiro, canhoto, um metro e noventa. Sempre que me via em sua casa, na companhia de Ignacio, parava para conversar e brincar. Tornou-se rapidamente para mim, como era para o irmão, um ídolo. Naquele momento, em 1982, conciliava a carreira esportiva com o exército, época em que o serviço militar ainda era obrigatório na Argentina chefiada pelos generais.
As coisas viraram de ponta cabeça no início do outono daquele ano. A deflagração de uma guerra contra a Inglaterra em disputa por um arquipélago perdido no meio do Oceano Atlântico causou perplexidade à maioria da população.
Toto foi mandado paras as Ilhas Malvinas e, assim como outros 648 jovens soldados argentinos, nunca mais voltou. Sua morte foi uma tragédia que atingiu a todos, mas sobretudo Ignacio. No dia seguinte à rendição da Argentina, 15 de junho, os alunos do nosso colégio, num gesto coletivo de solidariedade a Ignacio, compareceram às aulas vestidos com a camisa do Ferro Carril. Meu pai havia me comprado uma no meu aniversário de 10 anos. Em 27 de junho, debaixo de um frio desconcertante, o Verdolaga sagrou-se campeão invicto do campeonato argentino ao vencer a equipe do Quilmes e o nome de Toto ecoou, honrado pela massa, nas arquibancadas do Estádio Arquiteto Ricardo Etcheverri.
A obra acabou em 1984. Voltamos para São Paulo e, num mundo ainda desprovido de internet e redes sociais, logo perdi contato com Ignacio. Quando meu primeiro filho nasceu, décadas depois, propus à minha companheira batizá-lo de Carlos Alberto. Ela concordou. Toto é um palmeirense fanático nos dias de hoje, não por influência do pai, mas pelo encanto das cores verde e branco estampadas na minha velha camisa do Ferro Carril.
4º ao 20º lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025


