De Maria Elisa Savaget Carneiro

Num dia quente de verão sul-americano, uma família desperta cedinho, antes mesmo do sol raiar. É possível sentir a tensão no ar enquanto camisas da sorte saem dos armários e unhas começam a ser roídas, prontas para cumprir sua missão: é dia de estreia na Copa Libertadores da América. O time da casa volta à competição depois de duros sete anos e, obviamente, ninguém quer ficar de fora. Passam-se os minutos, passam-se as horas e, finalmente, um atrás do outro, os membros da família saem trotando pela porta aberta do quintal da casa enfeitada com as bandeiras de torcida, tomando o rumo do palco do espetáculo, como sempre fizeram, geração após geração.

Guiados pelo cheiro característico da fumaça dos sinalizadores e pelos estalos das latinhas de cerveja se abrindo, a família se posiciona, sentada na calçada, para observar a movimentação característica de dias assim. Entre os torcedores que chegam aos arredores do estádio, muitos se lembram de levar os olhos abaixo e, com a imagem da trupe, sorriem, como se lhes estivessem dando as boas-vindas e dizendo: estamos de volta, estamos aqui, somos do continente.

Chega o momento de entrar no solo sagrado, e para isso é preciso se esgueirar por entre as grades e pilastras de concreto, sorrateiramente; um desafio encarado com destreza pela família, já acostumada a esta e outras peripécias. Uma vez lá dentro, escondidos dos homens que usam coletes fluorescentes, a adrenalina começa a se fazer presente, e basta esperar pela hora de agir, pela chance de honrar a herança familiar.

O jogo enfim começa, e só se pode escutar o barulho das vozes e dos bumbos, que se movimentam ritmados. A pontinha do corpo de cada membro da família se balança para lá e para cá, numa dança de alegria e excitação. O tempo passa, passa, passa. A ansiedade aumenta e a partida amorna, num 0x0 persistente. Até que, aos 35 do segundo tempo, sentindo a necessidade de emoção, a família se apruma para o momento de dar continuidade a sua maior tradição. O membro mais novinho entende o recado, e dobra todas as pernas para tomar impulso: é chegada a hora de brilhar.

Ele dispara, invadindo o gramado e, de repente, a torcida desperta de uma vez, o estádio vai abaixo, mandantes e visitantes vibram com a presença mágica aparecida do nada – a verdade é que ele sempre esteve ali. Desordenados, os jogadores passam a perseguir o espectador ilustre. Os homens de colete fluorescente vêm logo atrás, desesperados. Ele dribla um a um, segurando a bola como brinquedo, correndo e correndo sem parar, preparado a vida inteira para aquele momento. Carregando o sonho de todos os seus antepassados, a performance termina por escolha própria ao virar de barriga para cima e receber o carinho do capitão do time da casa, exaurido pelo esforço da perseguição. Se abanando inteiro, é finalmente retirado, com a missão cumprida. Na arquibancada, um pai sussurra:

— Filha, é isso que chamam de perro en la cancha.

3º Lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025 

Ilustração com fundo laranja mostrando camisas de futebol com diferentes cores.