Ilustração com fundo laranja mostrando camisas de futebol com diferentes cores.

De Gabriel Bortulini

No meu primeiro mês no Rio, conheci um castelhano fanático pelo Bangu. Eu estava a caminho do Moça Bonita para cobrir a estreia do Loco Abreu. O homem, um tal de Ignacio Hernández, bebia num bar na rua Sul América. Tinha uns sessenta anos e, na verdade, era argentino. Aguardava numa cadeira de plástico vermelha, do lado de fora do bar, com uma dose de pinga sobre a mesa e uma camiseta listrada do time de 86. Debaixo de longos cabelos grisalhos, sobre as escápulas, se destacava o autógrafo de Mauro Galvão.

Era um torcedor fervoroso. Fiz umas perguntas óbvias e inevitáveis. Queria saber de onde havia surgido aquele amor pelo Bangu. Ele respondeu sem aborrecimento, falou da fuga da ditadura argentina, do encanto pelo time de Cláudio Adão, dos contos de Rubem Fonseca. Lá pelas tantas, citei a estreia do Loco.

— Vai voltar pro Uruguai assim que começarem as chuvas — respondeu.

Tudo era muito curioso: um argentino como manda o estereótipo, mas que idolatrava o Brasil. Parecia feito da mesma matéria de alguns gaúchos que tomam Fernet e cantam em portunhol nos jogos da Libertadores. Mas nunca tinha conhecido a versão argentina.

— Já sou carioca — ele disse.

Acompanhamos a partida detrás de uma das goleiras. Ignacio esbravejava, num português sempre seguro. Estava 1×1 quando o Loco partiu para a cobrança de uma penalidade.

— Sem cavadinha! — gritou. O uruguaio bateu colocado no canto esquerdo do goleiro da Portuguesa.

O argentino pulou e balançou o alambrado: um carioca genuíno. No final da partida, o Bangu cedeu o empate.
Saímos do estádio conversando, Ignacio revoltado com o destino do clube que um dia quase contratou Pelé. Na Rua Istambul, ele gesticulava como um italiano e falava em Zizinho quando ouvi o arranque de uma moto.

— Passa o celular, gringo — uma mulher de camiseta alvinegra disse do banco traseiro, serena, quase um sussurro.

Outra mulher acelerava a motocicleta parada. A de trás mostrou uma faca.

— No! — Ignacio disse e, como se o medo tivesse desarmado seu português, começou a repetir: — Soy carioco! Soy carioco!

Elas se entreolharam, sem compreender. Eu também não entendi em que o fato de ele ser carioca — o que visivelmente não era — poderia ajudar. Me muni não de coragem, mas de uma malandragem que nascia ali, quase aos pés do Moça Bonita:

— É o pai do Loco — eu disse. — É o pai do Loco!

Ignacio foi do pavor à indignação. Olhou para mim como se olhasse para um portenho:

— ¿Qué decís, loco, qué decís?

A mulher que guiava a moto girou meio corpo para trás, deu dois tapas no braço da outra.

— Caralho, o coroa é pai do Loco mesmo.

— Então vaza — a outra baixou a faca e Ignacio saiu troteando. Eu fiz menção de segui-lo.

— Pera aí — ela me impediu. — Passa cinquentinha pra gasolina.

Só achei duas notas de vinte.

— Gaúcho de merda — resmungou. — Bora!

A moto arrancou. No mesmo instante, Ignacio ressurgiu, apontando para elas: nas costas da mulher que levou meu dinheiro, um grande número treze sacudia logo abaixo do nome “Loco Abreu”, quase ilegível na lonjura.

 

4º ao 20º lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025