Ilustração com fundo laranja mostrando camisas de futebol com diferentes cores.

De Leonardo Catto

Cristián Garay questionava até a própria decisão de ter se tornado árbitro de futebol enquanto corria quase com a língua para fora da boca no gramado do Estádio Municipal de El Alto. Tuntum. Apesar de milhares de bolivianos gritando, ele ouvia mais as batidas do próprio peito em alarme.

Eram quase 4.100 metros acima do nível do mar. Muito mais do que o chileno nascido na comuna de Macul, ao leste de Santiago, está acostumado.

Tamanho era o cansaço que ele assinalou apenas três minutos para o acréscimo do primeiro tempo. E já seria muito! Mas o brasileiro Bruno Guimarães dividiu com o boliviano Roberto Fernández na área.

Pronto. El Alto cobrava que Garay apontasse o pênalti.

Há quem reclame da altitude. Há quem diga que é injusto. Há quem fale ser absurdo. E há quem admire esta característica singular (não só do futebol) da América do Sul.

Não era exatamente o que pensava Garay naquele momento. Ele apenas queria tirar os braços da altitude que o esganava do seu pescoço.

Já que teria de ficar mais tempo ali em campo antes de um pneumático descanso, ele planejou ao menos uma forma de fazer uma pausa. O chileno foi à beira do campo.

Fez de El Alto um purgatório enquanto olhava para a tela. Todos imaginavam que ele estava analisando a dividida. Observando o levíssimo contato do volante brasileiro com o lateral boliviano.

Enquanto isso, contudo, Cristián Garay aspirava o ar rarefeito para tentar reabastecer os pulmões. Sem dar pinta de que estava esbaforido, claro. Ardia o peito quando o ar gelado se infiltrava pelo o corpo quente.

Foi quando se deu conta da sua própria armadilha. Ele teria de soprar o apito para assinalar a penalidade. Poderia não marcar? Não teria base para isso. Não a 4 mil metros de altura e cercado por torcedores locais.

Decidido, Garay soprou todo o ar recém inspirado no apito e apontou para a marca da cal. Foi como se sua alma saísse naquele sopro. Exausto, ele mal deve ter percebido que tirou El Alto do purgatório e a colocou praticamente dentro do céu, mais do que já estava.

É de se perguntar se a vibração das arquibancadas puderam ser ouvidas em toda a Bolívia. Garay, tonto, mal deve ter escutado algo. Os locais tinham ar de sobra para comemorar.

Quem perdeu isso, contudo, com certeza chegou a tempo de ouvir El Alto gritar o gol de Miguelito. Alisson quase os calou, mas não conseguiu.

Apenas os bolivianos teriam fôlego para celebrar em El Alto. Assim foi garantido, graças também à Colômbia e à Venezuela trocarem artilharia em um jogo que acabou com nove gols, sendo três de Luis Suárez, que, evidentemente, não é o uruguaio.
Depois de sofrer oito gols em 1930, mais oito em 1950 e (veja só!) apenas quatro em 1994 (e ainda fazer um), a Bolívia voltará a jogar uma Copa do Mundo.

Claro que há uma repescagem pendente. Não dá para chamar isso “mera burocracia”, ainda quando consideramos que esta não será disputada em El Alto. Mas, enquanto não se perde, é permitido dizer: a Bolívia jogará a Copa do Mundo.

É assim que se vive no paraíso. Com a esperança do que vem pela frente. Foi assim que se viveu em El Alto. Tão alto e contente que não arranhou o céu, mas o acariciou.

Quem sofreu foi Garay, que ainda voltou para o segundo tempo já vencido pelos bolivianos. O Chile dele? Acabou em último, lá embaixo. Coitado.

 

4º ao 20º lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025