Ilustração com fundo laranja mostrando camisas de futebol com diferentes cores.

De David Ehrlich

26 de janeiro de 1946, Buenos Aires. No Estádio Monumental, as seleções paraguaia e boliviana preparavam-se para disputar o Campeonato Sul-Americano de Futebol. A torcida estava animada, mas havia certa tensão no ar: fazia 11 anos desde que ambos os países se massacraram na Guerra do Chaco, e embora as duas seleções já houvessem jogado alguns amistosos entre si, era a primeira vez desde o acordo de paz que se enfrentavam em um jogo “pra valer”. Como se isso já não tornasse a partida tensa, havia ainda um detalhe inusitado: ambos os técnicos em campo eram veteranos da guerra.

Passando as últimas instruções aos jogadores paraguaios, Aurelio González refletia sobre sua trajetória conforme olhava a seleção boliviana. No início dos anos 30, era um dos melhores atacantes do Paraguai, e chegou a receber uma oferta milionária para jogar na Argentina. Com o estouro da Guerra do Chaco, porém, acabou recusando-a, preferindo defender seu país – não no campo de futebol, e sim no campo de batalha. Retornou da luta armada como um herói nacional… Mas no fundo não sentia-se assim. Era apenas um sobrevivente; os verdadeiros heróis eram aqueles que deram tudo pela vitória, inclusive suas vidas. Ficava até envergonhado de poder viver um dia após o outro, sabendo que seus velhos amigos e irmãos jamais voltariam para casa. Sentia que parte dele morrera com eles no Chaco, e que o homem que agora treinava a seleção paraguaia era apenas uma casca do grande jogador que costumava ser.

Do lado boliviano, Diógenes Lara tentava não suar frio. Meio-campista quando jovem, também se alistou voluntariamente para o Chaco. Matou, chorou, enfrentou os limites de sua própria humanidade… Mas não foi o suficiente. A Bolívia perdeu, e quando Diógenes voltou para casa, estava mudado, desgastado.

Constantemente ouvia que a guerra fora perdida porque faltara “força de vontade” aos bolivianos; que se tivessem lutado com mais coragem, o resultado seria diferente. Ficava furioso quando ouvia isso: o que essas pessoas sabiam sobre coragem?! Como ousavam julgar o que ele tinha visto e feito, que à noite ainda às vezes deixava-o acordado, olhando para a escuridão?! Diógenes, porém, nada dizia: dele, assim como dos outros veteranos, esperava-se apenas que se resignasse e seguisse em frente. Mas se apenas pudesse provar que não era covarde, que a derrota boliviana não foi por falta de coragem… Por isso tornou-se treinador da seleção: ali, no campo de futebol, queria provar que ganhando ou perdendo, os bolivianos jogavam com afinco até o fim.

A partida estava prestes a começar, e Aurelio e Diógenes enfim olharam-se. 11 anos antes, caso estivessem assim frente-a-frente, tentariam matar um ao outro. Aqueles, porém, não eram mais tempos de guerra, e aquele estádio também não era as planícies quentes e secas do Chaco. Pelo que lutaram, afinal? Por um suposto petróleo que, até aquele momento, ainda não havia sido encontrado? Talvez fosse chegado o momento de enfim fechar aquelas portas assombradas do passado; de deixar para trás aquelas antigas rivalidades que resultaram em um banho de sangue, e iniciar algo novo, uma amizade entre vizinhos cuja única rivalidade é aquela do futebol.

Ao mesmo tempo, ambos os técnicos estenderam as mãos um para o outro.

– Bom jogo.

– Bom jogo.

 

4º ao 20º lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025