Ilustração com fundo laranja mostrando camisas de futebol com diferentes cores.

De Leo Lepri

 

“Ele ruminava bronca”, comentava a arquibancada. Jamais participou das rodas de bobinho. Não admitia ser feito de bobo nem de brincadeira.

Os colegas desconfiavam que seria capaz de emendar cinco embaixadinhas sem deixá-la cair. Nunca alguém reuniu coragem para lhe perguntar isso. “Não faço malabarismo como palhaço de circo”, disse certa vez (das poucas em que falou qualquer coisa).

Nos dias prévios aos jogos ele não cortava o cabelo, não fazia a barba e não tomava banho. A esposa reclamava bastante da última, apenas para as amigas.

As chuteiras eram as mesmas do dia em que estreou pelo San Telmo, época em que os ingressos eram picotados na entrada. Estavam remendadas e levavam barbantes no lugar dos cadarços. Não gostava dos modelos novos porque vinham com as fitas curtas. Preferia o nó firme estrangulando o peito do pé. Aproveitava a sobra para dar duas voltas ao redor dos tornozelos. Não queria a perna frouxa na dividida.

Carrancudo, pisava o gramado e procurava o rival habilidoso de turno. Enquanto os contrários tocavam o campo e se benziam, ele encarava olhando lá dentro jurando roubar a alma do outro. Só depois ia para o próprio aquecimento.

Os companheiros em exibições de talento explícito no meio de campo. Trocas de passes de ombro, cabeça, costas e o raio que o parta. Ele seguia sozinho para trás de um dos arcos onde os quero-queros faziam ninho no chão.

Olhava para o casal de pássaros e recebia dois pares de olhares desconfiados de volta. Rivalidade de um encontro marcado para todos os domingos. Contas pendentes, insultos de ambos lados e tensão entre aves e o defensor central Candombero.

Sem dizer nada, sem mover um só músculo da face, o brutamontes tomava impulso e disparava sem freio na direção dos bichos. Jamais desviou a trajetória um centímetro sequer.

Ao se aproximar pisando firme e arrancando tufos de grama e de terra, obrigava os quero-queros a baterem asas para longe pelo próprio bem, abandonando a cria piando num pedido desesperado por ajuda. O filhote era poupado no último instante, claro.

No domingo seguinte a mesma cena.
Os companheiros longe, exibicionistas. Ele correndo atrás das aves.
No outro domingo igual. E no outro. Assim por diante.

Era rotina do público também. Torcedores trocavam o vinho do lado de fora e entravam meia hora antes para acompanhar o estranho ritual.

Mais uma vez e ele fez tudo como estava acostumado. Não cumprimentou ninguém. Distribuiu encaradas. Vestiu-se num canto úmido. Subiu pro campo. Camisa dentro do calção, duas voltas de barbante no tornozelo e barba de uma semana. Jurou os rivais. Seguiu para o lugar atrás do arco próximo a la popu.

Fitou os pássaros e correu. Rápido, violento, decidido.
As aves não se mexeram. Elas paradas, ele perplexo.
Deteve-se diante delas, olhos esbugalhados.
Nenhum dos quero-queros voou.

Ele não tomou mais que meio segundo. Fez meia volta.
Correu para o vestiário, desceu as escadas e se aposentou.


Tempos atrás, uns três anos, Espósito, que fechava a linha de quatro ao lado dele, disse que o viu. O carro teve um pneu furado num pueblito perto de Olavarría, precisou de um borracheiro. Cruzou as ruas de terra da vila, das que descansam depois do almoço, e jura que ele estava lá: em pé no centro da pracinha dando aulas particulares de sorriso a uns garotos.

 

4º ao 20º lugar no Concurso de Crônicas e Contos do Museu do Futebol 2025