Camisa de mangas curtas, na cor amarelo-claro, confeccionada em 100% poliamida, fibra sintética amplamente utilizada na produção de roupas esportivas. Nas laterais, apresenta pequenos furos que favorecem a ventilação durante a prática de atividades físicas. Em tamanho P (pequeno), mede 55cm. de altura por 42cm. de largura. Foi produzida no Brasil pela Topper [1], marca especializada em artigos esportivos com sede em São Paulo. Possui dois bolsos: um com a logomarca da fornecedora[1], e outro com o escudo da Federação Paulista de Futebol (FPF). Na manga direita, exibe o patrocínio da marca Motorola, empresa de telecomunicações.
A descrição acima refere-se ao “objeto da vez” de setembro. Trata-se do uniforme pertencente à ex-árbitra Renata Ruel, escolhido em comemoração da efeméride do Dia do Árbitro, celebrada em 11 deste mês. A peça foi cedida em comodato, por tempo determinado, ao Museu do Futebol e encontra-se em exibição na mostra principal, na sala “Almanaque da Bola”, mais especificamente na “Vitrine do Apito”. Ao seu lado, estão outros objetos relacionados ao desempenho de árbitras e árbitros, a saber: duas bandeiras auxiliares, um rádio comunicador, uma braçadeira, uma placa de substituição e de acréscimos, uma medalha de sorteio, um relógio de arbitragem, um apito, dois cartões (amarelo e vermelho) e um spray demarcatório.
No centro da “Vitrine do Apito”, está exposta a camisa de Renata Ruel, o primeiro uniforme de arbitragem desenvolvido especificamente para o corpo feminino, lançado em 2007 pela FPF. Por sua relevância, após a renovação do Museu do Futebol, concluída em 2024, a peça passou compor a exposição principal da instituição. Sua proprietária, Renata Ruel, é ex-árbitra que integrou os quadros da FPF e da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e, atualmente, atua como comentarista de arbitragem em canais esportivos.

Considerando como marco temporal o ano de 1971, quando Léa Campos, uma das pioneiras da arbitragem no país, foi reconhecida pela FIFA como a primeira árbitra de futebol do mundo, seriam necessários mais de trinta anos até que fosse produzido um uniforme específico para as mulheres. Até então, elas utilizavam modelos masculinos, situação semelhante à enfrentada, por exemplo, pelas jogadoras brasileiras no Torneio Internacional de Futebol Feminino organizado pela FIFA em 1988 [2]. É preciso pontuar ainda que apenas em 2019 a Nike, patrocinadora da Seleção, lançou um uniforme com design específico para as jogadoras.
Em entrevista à equipe de pesquisa do Museu do Futebol, Renata Ruel destacou que, enquanto os homens recebiam uniformes prontos e adequados para atuar, as mulheres precisavam realizar diversos ajustes nas peças. Ela acrescentou que isso ocorria porque o futebol ainda não estava preparado para a presença feminina. Foi apenas com o aumento progressivo da participação delas nos cursos de arbitragem que se decidiu criar um uniforme que atendesse às necessidades das árbitras.
Esse episódio evidencia, de forma mais ampla, que o futebol foi (e continua sendo) um espaço historicamente hostil à atuação das mulheres em diferentes funções. Os estudos sobre gênero no esporte [3] apontam que, desde a infância, há uma divisão entre as modalidades consideradas mais adequadas para meninos e aquelas vistas como próprias para meninas. No Brasil, por ser culturalmente associado ao universo masculino [4], o futebol afasta as meninas desde cedo. Nesse sentido, é sempre válido lembrar que a prática do esporte bretão foi proibida por lei para as mulheres praticamente por quarenta anos, sob o argumento de que seria inapropriada para o corpo feminino.
Dessa forma, outros esportes, como vôlei, natação e ginástica artística, por exemplo, são vistos culturalmente como práticas mais “adequadas” para elas. A própria Renata, em entrevista, relatou ter vivenciado essa divisão durante a infância: enquanto os meninos dominavam o futebol, as meninas precisavam buscar outras atividades. A imposição desse afastamento apenas reforça a ideia de que o futebol não seria um espaço para elas, independentemente da função que desejam exercer.
Além disso, mesmo quando meninas e mulheres conseguem estabelecer uma relação com o futebol, adaptando-se como podem, acabam sendo relegadas a papéis de coadjuvantes. Na arbitragem, conforme relatou Renata Ruel e como indicam pesquisas sobre o tema [5], a maioria das mulheres atua como árbitra assistente, e não como árbitra central. Isso ocorre porque os espaços destinados às árbitras centrais são muito mais restritos do que aqueles disponíveis para as chamadas “bandeirinhas”.
Portanto, a ascensão feminina na arbitragem tem sido um processo mais lento e difícil do que a dos homens. A título de exemplo, apenas em 2021 Edina Alves Batista tornou-se a primeira mulher a apitar um jogo masculino profissional da FIFA. No âmbito da Copa do Mundo, somente na edição de 2022 se viu a primeira árbitra a conduzir uma partida em um mundial masculino, no caso a francesa Stéphanie Frappart. Por fim, apenas em 2023 ocorreu, pela primeira vez, a formação de uma equipe de arbitragem composta integralmente por mulheres em um jogo de futebol masculino no Brasil, válido pela Série B do Campeonato Brasileiro.
Essas são algumas das dificuldades que evidenciam o árduo caminho a ser percorrido pelas mulheres na arbitragem. O futebol permanece um espaço hegemonicamente masculino em todas as funções que dele derivam. A camisa de Renata Ruel, por sua vez, simboliza a resistência feminina diante desse cenário. Seguimos na busca por virar esse jogo!
Letícia Marcolan
Pesquisadora plena do Centro de Referência do Futebol Brasileiro
NOTA
[1] Fundada em 1975, na Argentina, a Topper foi trazida para o Brasil no mesmo ano e, em 2008, a filial brasileira adquiriu a matriz argentina. Ao longo de sua trajetória, a marca estampou importantes camisas, incluindo o patrocínio ao uniforme da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1982, 1986 e 1990. Por mais de dez anos, entre 2004 e 2014, a empresa foi parceira da Federação Paulista de Futebol. Em 2015, passou a ser controlada pela BR Sports, empresa do Grupo Sforza.
[2] Para mais informações sobre o torneio consulte a nossa exposição virtual: Primeiro Mundial de Mulheres na China: memórias da jornalista Claudia Silva, única brasileira na cobertura do torneio.
[3] KAUER, Kerrie; KRANE, Vikki. Sexual Identity and Sport. In: ROPER, Emily. Gender Relations in Sport. Brill, 2013. p. 53-71.
[4] Neste texto, compreendo que o que chamamos de sexo biológico é uma construção social e histórica (Lugones, 2020). Portanto, se as meninas são consideradas inaptas para a prática esportiva, isso se deve à dominação de gênero, e não a uma suposta “natureza” delas. Ver: LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. São Paulo: Boitempo, 2020.
[5] MONTEIRO, Igor Chagas; NOVAIS, Mariana Cristina Borges; SOARES,
João Paulo Fernandes; MOURÃO, Ludmila. Mulheres de preto: trajetórias na arbitragem do futebol profissional. Motrivivência – Revista de Educação Física, Esporte e Lazer, Florianópolis, v. 32, n. 63, p. 1-15, 2020.