Nada se faz com pressa (Natalício Karaí).

Troféu confeccionado artesanalmente e pintado à mão com caneta hidrográfica. Possui 33 cm de altura por 15 cm de largura e 17 cm de profundidade. A representação é de uma figura feminina que possui cabelo longo e preto. A figura está ajoelhada e segura à frente do corpo, com as duas mãos, um suporte onde repousa uma arara azul. Está trajada com blusa e saia em tom terroso, cocar de penas azuis com pena mais destacada vermelha, brincos vermelhos, colar, pulseiras vermelhas com detalhes em preto e carrega grafismos desenhados no rosto, nos braços e na saia. A sua materialidade é constituída inteiramente de madeira de caixeta. Encontra-se em bom estado de conservação. Apresenta marcas naturais e elevações próprias da madeira e por essas especificidades se torna um objeto único. O escultor e artista da obra é Natalício Karaí de Souza, uma das lideranças Mbyá Guarani da tekoá Pyau, localizada na Terra Indígena [1] na Zona Noroeste da cidade de São Paulo, local onde ocorre o Torneio Xondárias Kanha’gue Arandua.
A descrição acima refere-se ao objeto da vez do mês de agosto, o troféu Xondárias Kanha’gue Arandua, que leva esse nome para transmitir a força e sabedoria das mulheres indígenas e está em exibição na mostra temporária Jaraguá Kunhangue Ouga’a — O Jogo das mulheres do Jaraguá que fica em cartaz no Museu do Futebol até o dia 31 de agosto de 2025.
Com o intuito de compreender esse objeto como fonte de pesquisa, em meados do mês de julho, integrantes da equipe do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, foram até a Terra Indígena do Jaraguá , para conversar com dois representantes do povo Guarani: Natalício Karaí, xeramõi (líder ancião da comunidade) e artista responsável pela confecção da peça e Jandira Maiara Pará Mirim, uma das lideranças do território e uma das mobilizadoras do projeto que originou o Torneio Xondárias Kanha’gue Arandua. Escutar acerca dos processos de concepção e desenvolvimento de um dado objeto é fundamental para contextualizá-lo em um espaço museológico e para ampliar a compreensão e o sentido que esse artefato recebe em sua comunidade.
Chegando ao território, logo fomos recebidas pela produtora Ana Flávia, uma parceira no desenvolvimento do projeto que levou à criação do Torneio, que teve sua primeira edição em 2024, e que foi mobilizado pelas mulheres da aldeia e financiado pelo Fundo Internacional de Mulheres Indígenas do Peru. Como parte desse projeto, foram oferecidas oficinas para todas as pessoas interessadas do território, e entre os resultados dessas atividades, as mulheres desenvolveram os desenhos e grafismos dos uniformes que serão utilizados nos três dias de campeonato deste ano. Também foram confeccionados por elas as medalhas que serão oferecidas como premiação, sendo a plaquinha de identificação da competição, composta de MDF, e o colar foi produzido a partir de miçangas, totalizando 30 objetos, sendo que os três primeiros times colocados na disputa receberão 10 medalhas cada.
Ao andar pelo local, logo encaramos sons bem diferentes da cidade, as folhas das árvores balançando com a passagem do vento e o caminho a nossa frente composto de uma terra vermelha cheia de raízes. Foi nesse contexto que encontramos seu Natalício Karaí de Souza, que trazia em mãos um pedaço de madeira que já estava ganhando contornos e formas – aparentemente se tratava de mais um troféu. Estava acompanhado de uma ferramenta, uma faca menor para realizar a raspagem da peça. Era possível perceber os farelos de madeira pelo espaço e em suas mãos, reafirmando seu Natalício como um verdadeiro artífice [2]. Quando questionado o que era a peça, as nossas suspeitas foram confirmadas, se tratava de fato de um novo troféu para o Torneio Xondárias Kanha’gue Arandua.

Seu Natalício conduziu-nos até a Opy (casa de reza), local sagrado onde ocorre debates e rituais importantes para o Povo Guarani. Lá tivemos a experiência de ouvir sobre o artefato em exposição no Museu: se trata de um troféu de segundo lugar que ainda não foi premiado, pois o Torneio está previsto para ser realizado no segundo fim de semana de setembro de 2025. A disputa vai acontecer através do sorteio de grupos de chaves e no total serão oito equipes, sendo quatro times do território do Jaraguá e quatro equipes convidadas de outras comunidades, totalizando mais de 300 pessoas.
Seu Natalício relatou-nos ainda que, para produzir os troféus, tanto o que está em exposição como os próximos, ele parte de sua imaginação, portanto ele precisa visualizar mentalmente suas possíveis criações para, depois, transpor para a madeira. Esse processo também está ligado à escolha da matéria-prima ideal que, para seu Natalício, é a caixeta, madeira de característica de baixa densidade e macia ao corte. Sua extração exige preparo de observação da natureza, pois a extração (para não repetir corte) da madeira depende da fase da lua: se o corte for realizado na fase da lua nova ela racha ou cria insetos. O ideal para o talhe é na lua cheia ou na minguante, uma vez que essa escolha vai influenciar a durabilidade do material. Nas palavras de seu Natalício, ele trabalha para que sua arte perdure o maior tempo possível. Ele relatou-nos, também, que trabalha com amor e coloca a si mesmo no desenvolvimento de sua arte. Frisa, ainda, que somente um pensamento tecnicista demais altera o resultado da obra. Nesse processo, a escolha das ferramentas também é uma etapa importante. Atualmente, seu Natalício dispõe de uma variedade de instrumentos, realidade distinta de outrora, quando possuía somente facão ou faquinha como equipamento. Hoje, com o desenvolvimento da tecnologia, e com o objetivo de deixar o acabamento das peças alinhado ele faz o uso de serralheira e lixadeira elétrica. O tempo de produção é relativo e, conforme seu processo criativo, sem pressa alguma. Ele tem orgulho de ser artista de ver sua arte exposta em um museu.
Durante o diálogo com seu Natalício e o retorno dele para suas atividades, a atleta representante e liderança Jandira Maiara Pará Mirim também conversou conosco sobre os processos de desenvolvimento do Torneio Xondárias Kanha’gue Arandua, atravessado pelas suas próprias vivências. Em seu relato, entendemos que tudo começou como uma brincadeira. O futebol para as mulheres do território é algo lúdico e um momento de lazer, mas também se transformou em instrumento de empoderamento feminino. De acordo com Jandira, o futebol é uma forma de as mulheres saírem da rotina, reaproximarem-se e fortalecerem os laços entre elas, a fim de ressignificarem juntas conhecimentos ancestrais e tradicionais. Em sua vida, ela entendeu que esse esporte a transformou na mulher que ela é hoje, uma liderança que tem o direito de se expressar e tornar sua voz ativa dentro e fora de seu território, sendo que essa vivência é muito potente.
Em suma, na medida em que observamos o troféu , ele tem a potencialidade de provocar reflexões a respeito de sua concepção e os sentidos que ele desperta. Na contemporaneidade, quando o trabalho artesanal, como afirma Richard Sennet, é subvalorizado, a arte de seu Natalício é um ato de resiliência. Diante de uma sociedade que se pauta em uma lógica tecnicista e produtivista, que se sobrepõe à qualidade de vida no trabalho e do trabalhador, mais que um objeto de premiação, esse troféu materializa o saber-fazer de uma comunidade através do conhecimento ancestral. Já o futebol nos pés das mulheres indígenas, além de significar um momento lúdico , se transforma em reafirmação da cultura coletiva. O brincar, nesse contexto, é reencantar a vida, como também é o entalhar da madeira, sem pressa.
Sibelle Barbosa
Museóloga do Museu do Futebol
NOTA
[1] No dia 08 de maio de 2025, houve a republicação da portaria 581/2015, que reconhece novamente a ocupação tradicional de 532 hectares do território pelo Povo Guarani. Em 2017, a portaria havia sido anulada pelo governo federal da época e limitava os limites da TI em apenas 1,7 hectare. A nova portaria, de revogação, é uma reparação da situação que ocorreu em 2017 e um avanço do processo de demarcação definitiva que é seguida pela homologação via decreto da Presidência da República.
[2] SENNET, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Referências bibliográficas
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. In: Horizontes Antropológicos, v. 18, n. 37, 2012. p. 25-44.
SENNET, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2012.