Por Mariana Carvalho
Um terreno com pouca grama e muita lama, logo depois dos muros encardidos das últimas casinhas, servia de campo de futebol para a criançada da vila. Década de oitenta, os meninos sonhavam em ser Zico, Sócrates, Careca. Romário também tinha o seu lugar, revelação do Vasco, depois já foi direto para o PSV. Todo mundo queria ser o Romário.
Bem, todo mundo não. Eu não queria. O meu ídolo era o Franchino Baresi. O lance não era fazer gol, mas sim não deixar fazer. O cara ficou conhecido como o melhor zagueiro do mundo. Com vinte e dois anos, Baresi se tornou o capitão do Milan, não era para qualquer um.
Nunca vesti em campo a camisa seis do jogador italiano, apesar de tê-la no meu armário, junto com o look Madonna, o vestido rodado que a vó Nanda costurou e a melissinha com cheiro de chiclete. Meu pai tinha um amigo que viajava a trabalho para a Europa todo semestre e pediu para trazê-la. Acontece que ele se esqueceu de combinar com a galera da várzea – era proibido menina jogar futebol.
No quintal, fazia embaixadinhas, marcava gol carimbando a parede com a bola, cobrava pênaltis. Sabia jogar muito melhor que os pernas-de-pau dos meus irmãos, mas era me-ni-na. Eu ainda aparecia pelo terreno dando uma de desentendida, chutando a bola bem fraquinho na lateral das linhas. Os moleques fingiam que não me viam, nunca me chamavam para compor o time, mesmo sabendo que o meu jogo não era de se jogar fora.
Os manos chegavam em casa cobertos de barro, cabelos suados. Enchiam um copão de água, comiam tudo o que viam pela frente, banho de mangueira no quintal. Dona Juci, orgulhosa de seus hominhos, perguntava dos gols, das faltas, se alguém havia se machucado. Um suco de laranja fresquinho para eles que, animados, inventavam mil e uma façanhas para a genitora fascinada.
Como dizia antes, nos anos oitenta, os garotos tinham um único desejo: ser jogadores de futebol. Não havia coisa melhor, ganhar dinheiro jogando bola, viagens, mulheres, carrões. Um dos pais da vila, embarcando no devaneio do filho, decidiu cotizar com outras famílias a contratação de um professor. O pessoal não tinha dinheiro para comprar carne, arroz e feijão, mas encontraram um jeito de pagar o treinador. Meus irmãos se empolgaram, minha mãe se empolgou, até vó Nanda se prontificou a costurar o uniforme do time da vila.
O professor Muriel chegou ao terreno enlameado com pose de craque. Trazia um sacão cheio de bolas, além de cones e outros apetrechos. A garotada ficou em êxtase – o cara era profissional! Pediu para ser chamado de técnico, mandou todo mundo se sentar em roda, conversou longamente com os pirralhos. Eu ali, de butuca, junto com outras meninas que tinham interesse diverso do meu – admirar os pernões do professor.
Semanas se passaram, o técnico aparecia todo sábado às oito da matina e só ia embora ao meio-dia. Dona Juci e outras mães costumavam convidá-lo para bater um rango antes de pegar o fusquinha. Um dia, depois do almoço, o professor me viu no quintal batendo uma bola. Tu sabe jogar, garota. Olhei para ele, fingi estar acostumada com o elogio. É, eu sei; sou muito melhor que os manos. Muriel riu. Tu é marrenta, hein? Gargalhei junto. No sábado seguinte, quem era a assistente do técnico do time da vila?
Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)