Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Sérgio Gorni de Almeida

Maradona foi o melhor com quem joguei. Não o argentino, o nosso Maradona. Careca, preto e brasileiro, batizei-o assim pelo talento sobrenatural da perna esquerda, capaz de elevá-lo à condição de semideus, e pela tendência autodestrutiva materializada no tabagismo.

Qualquer que fosse o jogo, saía por último do vestiário com o cigarro na boca: “É só dar um susto no pulmão que ele pega no tranco”, dizia, escondendo fumo e isqueiro no meião para um pito no intervalo.

Segundo ele, um problema respiratório impedira sua profissionalização. “Fato exclusivamente genético, nada a ver com o tabaco”, enfatizava. Era também o que diminuía sua velocidade.

Mas quem precisa ser veloz quando se pode flutuar? Era assim que ele jogava: calçava as asas de Hermes e pairava no ar. Evitava buracos escondidos na terra batida e usava a canhota para tabelar com o vento, mudar de direção e superar os marcadores. Os rivais, humanos, corriam para alcançá-lo, mas logo pisavam nas fendas dos campos e caíam abraçados aos tornozelos, abrindo o caminho do gol.

Um dia, jogávamos fora de casa valendo churrasco e cerveja. Ou seja, jogávamos valendo tudo. A cada lateral, éramos xingados. A cada escanteio, a torcida nos dizia que a coisa estava feia, o dono do time, bicheiro, descobrira a traição da mulher e só faltava uma derrota para ele pirar de vez e matar alguém. Eram as mesmas táticas que usávamos ao jogar em casa, por isso não temíamos. Mas aquele jogo nos faria ver a morte certa.

Tudo caminhava para um empate até que, nos segundos finais, Maradona marcou o mesmo gol que o argentino fizera na Copa, contra a Inglaterra. Não, não o do drible.

Bola alçada à área e o nosso Maradona subiu aos céus. Punho esquerdo em riste, desprezou as leis da física e resistiu à gravidade feito anarquista da bola. No choque entre duas forças da natureza, venceu a mais teimosa: Maradona parou no ar. Ficou ali até o juiz piscar e quando o árbitro piscou,  nosso Maradona usou a mão, casou a bola com o gol e nos deu a vitória.

Percebendo que o juiz não vira a falta, o goleiro enrubesceu de raiva e vergonha, correu atrás do nosso herói e lhe acertou um soco. Em um jogo de corpo, Maradona se desvencilhou do rival e evitou novos ataques.
Nisso, os fanáticos pelo time do bairro invadiram o campo, armados com barras de ferro, bloqueando as saídas e ameaçando nossas vidas. O perigo ganhou forma, mas havia um impasse: embora proferida a sentença de morte, ninguém queria ser o carrasco.

Abusando da indiferença ou rendendo-se ao vício, Maradona aproveitou a hesitação e sacou fumo e isqueiro do meião. Supercílio aberto, sangue escorrendo, acendeu, tragou e exalou a fumaça. Diante da dúvida, súbito, veio a solução: caminhou até o goleiro a quem transformara em piada. Destemido e generoso como todo craque, estendeu a mão. Oferecia o cigarro, oferecia a paz.

Nosso futuro estava ali, nas mãos de quem só pode jogar com os pés. Os ventos não sopraram, os pássaros silenciaram e nós engolimos em seco.

O arqueiro sorriu e apontou para a boca. Pegar o cigarro com a luva parecia mesmo difícil. O craque posicionou o fumo diante do goleiro, que tragou duas vezes.

Pronto. Sem uma palavra, munido apenas da simplicidade dos gênios da bola, nosso Maradona selou a paz

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)