Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Francesco Jordani Rodrigues

Da floresta amazônica às restingas fluminenses, do planalto central aos charcos do sul, nossas várzeas brotam dos ciclos e vontades da natureza. O campo outrora seco parece se reservar à acolhida das águas, as quais após transbordarem escoam pelas fissuras da terra, para de novo se esconderem. Nenhum ambiente poderia ser tão propício à criação e permanente reinvenção do futebol brasileiro quanto nossas várzeas. Remodeladas pela infinita sucessão de secas e cheias, guardam em si a promessa dos reinícios.

Há séculos e séculos, foi nas várzeas do Rio Juruena, terras do futuro Mato Grosso, que o deus Wazare semeou nos corações da tribo Paresí o culto aos rituais e jogos coletivos. Foi Wazare quem ensinou que na panela de barro quente deveria ser espalhada a seiva da mangaba até que ela ganhasse liga e espessura. Disse ainda que, quando a massa secasse, deveria ser dobrada, para só então receber um sopro de vida. Inflada, nascia então uma esfera sagrada, perfeita para a prática do jikunahati, o futebol de cabeça. Os indígenas do planalto central moldaram, assim, uma espécie de gênese e ancestralidade do nosso futebol – lúdica, festiva, integradora, criativa.

Nossos campos de futebol formam um mapa oculto da nossa íntima relação com a terra, com a nossa sede de pertencimento e identificação. Seria possível contar boa parte da história das carências, potências e até mesmo da mentalidade do povo brasileiro, atravessando nossos terrenos baldios, margens dos rios e areias das praias, procurando colher memórias e histórias de meninas e meninos, mulheres e homens em torno deste mistério fantasiado de esporte.

Não faltariam exemplos os mais ricos. Foi à beira do Córrego da Saracura, margeado pela Rua Celeste, em São Paulo, que “El Tigre” Arthur Friedenreich iniciou a trajetória que o levou a ser o primeiro jogador negro do futebol brasileiro. O menino Garrincha, com as pernas arqueadas como dois enigmas, podia ser visto, dia sim dia também, no açude Inhomirim, tomando banho de cachoeira entre passeios a cavalo e jogos nas várzeas de Pau Grande. Garrincha tinha nome de pássaro e alçou voos altos sobre a mediocridade, a indiferença e a lógica banal. E, na terra batida do interior de Alagoas, a pequena Marta esvoaçou seus cabelos por descampados e paragens, trazendo consigo uma tempestade de dribles e gols que a levou ao Rasgabola, equipe amadora de Dois Riachos. À revelia de uma pretensa e estúpida macheza, a menina virou atleta, rainha, lenda.

Neste país de injustiças continentais, também campo de ferrenhas e urgentes batalhas, nossas várzeas são berçários de incontáveis sonhos daquelas e daqueles que esperam pela chance de extravasar seus talentos, modelando a argila com a planta dos pés. Nossos campos são veias e veios da pulsação inquieta de um povo que traz no sangue sua inquietude, seus transbordamentos. Como num ciclo ininterrupto, sempre que avistamos novas várzeas, de bate-pronto nos encharcamos. E de novo, de novo, e de novo, estamos entregues por completo ao jogo, ao rito, ao encontro, ao segredo mais fundo de si – que só conhece quem se inunda e se joga… Dos pés à cabeça.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)