Ilustração com fundo laranja mostrando desenhos de pessoas jogando futebol amador, e o título 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol

Por Elisa Massa

No bairro da Serra, as pessoas eram separadas pelos times de várzea. Sendo assim, a diversidade humana era dividida entre três castas: o time dos ditos “bandidos do bairro” era o Guaxupé F.C; o time dos policiais se chamava Grêmio General Getúlio; e o time dos bebuns que frequentavam o bar do Bigode era o autointitulado Esquadrão do Bigode – que tinha como centroavante o lendário Toninho Cachaça. Sua rotina peculiar incluía doses generosas de pileque antes de cada partida. Quando não tomava, não marcava. Na Serra, rezava a lenda que a cada copo de cachaça, melhor ele jogava. Sóbrio, era mais grosso que o Dadá; bêbado, mais habilidoso que o Pelé. Próximo ao campinho, havia o conjunto militar. Assim, dentro de campo e na arquibancada, todos andavam armados; na menor das confusões, era tiro para o alto e uma correria desgraçada. Antes do jogo, o próprio General Getúlio revistava os times e apreendia armas de todos os tipos: revólver, canivetes, pedaço de pau. Não raro, alguém ia preso.

Naquela época, não era comum mulher jogar futebol. Mas como eu era a filha do Getúlio, eles abriram uma exceção e colocavam uma moça em cada time. Gosto de pensar que ganhei a minha titularidade em campo e por isso nunca era substituída. Também era verdade que era papai quem apitava os jogos e isso me dava uma certa liberdade. Meus carrinhos maldosos na canela dos adversários eram sempre permitidos. “SEGUE O JOGO!” dizia ele, com um sorriso de canto de boca e um orgulho paternal em seus olhos. Penalidade, papai nunca marcava contra a gente. Não adiantava o adversário reclamar. Na verdade, não havia pestanejo: todos ficavam intimidados pelo revólver em sua cintura.

O Guaxupé F.C. foi lentamente desaparecendo, já que a maioria dos jogadores eram presos devido à rivalidade dentro e fora do campo. Assim, coube ao Esquadrão do Bigode abrigar os que sobraram. Essa rixa não se restringia ao campo: era proibido namorar irmãs, filhas e primas do outro time. Mas, secretamente, eu tinha uma queda por uma zagueira do antigo Guaxupé, que coçava a cabeça quando jogava. Assim, aprendi: se o juiz não vê, não é falta! No amor, eu entrei de sola.

Naquele dia, jogávamos uma final de campeonato e o zero a zero se arrastava. O jogo já estava para encerrar, quando o atacante do nosso time deu um belo chute no ângulo. Seria o gol que decretaria a nossa vitória, mas o impossível aconteceu: o (sempre vazado) Peneira, goleiro do Bigode, voou e foi buscar. No rebote, Piolho pegou a bola na defesa, abaixou a cabeça e driblou o primeiro. Bigode rapidamente correu para o seu carro, pois era conhecedor da jogada. O próprio Getúlio, que apitava a partida, gritou em pânico: “DERRUBA A PIOLHO, ADA!”. Mas ela passou pela zaga, driblou o nosso goleiro e rolou a bola para dentro da rede. Na comemoração, todo o Esquadrão do Bigode correu para dentro da Kombi estacionada na marca de escanteio. Como combinado, eu também pulei para dentro do carro. O português acelerou e assim eles fugiram com a inédita vitória – e a zagueira adversária. Os militares até tentaram sacar revólver, mas já era tarde. A Kombi já não era mais vista. O bar do Bigode nunca mais abriu. Em toda Serra, via-se o cartaz pregado: “Procura-se Piolho: Ladra habilidosa, conhecida por suas zagueiradas”.

Texto contemplado no 3º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2024 (4º ao 20º lugares)