Ilustração retrata a visão de um campo de futebol a partir da torcida em uma arquibancada

Por Stephanie Calazans

O dia não era dos mais bonitos, mas papai insistia em me tirar de baixo das cobertas. Eu entendo a preocupação dele. É raro me ver fora da cama e eu nem sei mesmo se os dias estão nublados ou se sou eu que estou.

É assim desde que meu irmão morreu. As últimas palavras que vociferei, quando aconteceu, foram gritos de uma dor negacionista que se recusava a aceitar que agora, para encontrá-lo, só no cemitério. “Prefiro não sair nunca mais”.

Entretanto, ele já tentou me levar ao parque. À sorveteria. Até a uma feirinha de adoção, em uma tentativa desesperada de fazer alguma coisa brotar dentro de mim.

Não é culpa dele.

Mas me esforço para fazer sua vontade. De alguma forma, me sinto ainda mais culpada por vê-lo tentando tanto me arrancar um sorriso. Ele não aceita que já estou fria por dentro.

Levanto sem perguntar para onde vamos. Não faz diferença. Em poucos minutos já estarei lutando contra as lágrimas que insistirão em cair do meu rosto quando alguma coisa, qualquer coisa, me fizer lembrar dele.

E então percebo que meu pai enlouqueceu de vez. Por um instante cheguei a pensar que ele estaria me levando para um show e me tremi ao imaginar quantas horas passaria ali, ouvindo músicas que fatalmente me lembrariam de meu irmão. Mas é pior. É um estádio de futebol.

Era o programa preferido dos dois. É tão óbvio que tudo isso colocará nós dois em prantos: lembrar do meu irmão cantando a plenos pulmões, incentivando aqueles homens como se sua vida dependesse disso. O que deu no meu pai?

Decido não contestar. Não é justo estragar uma memória boa. Mas não consigo parar de me perguntar, por que isso era tão importante para ele? Homens correndo atrás de uma bola.

Meu pai começa a entoar um canto e me sinto constrangida em não acompanhar. A letra é fácil. Então, quando vejo, já me juntei timidamente àquele mar branco de gente que tem um único objetivo: não se deixar vencer.

É divertido ver aquelas pessoas tão irritadas com um jogo. “Se esse fosse o maior dos meus problemas”, penso.

No fim, percebo que a vida ali é mais simples. A pipoca está murcha, o refrigerante está sem gás, mas não importa. A missão é apenas uma e todos ali estão juntos por ela. Ninguém vai aceitar a derrota.

Depois de aproveitar da sensação consoladora de gritar e xingar descontroladamente pessoas para quem a minha descarga emocional nem estava direcionada, sinto minhas mãos suadas. Meu coração acelera e há pulsação.

O grito de gol veio do nada e saiu com tanta força, tanta energia, que aqueceu o resto do meu corpo por completo.

Os sinalizadores dificultam a minha respiração, mas eu não me importo. Vejo, entre a fumaça, que começa um movimento de “ola” lá na outra ponta da arquibancada. Ela vem acompanhando um fio de luz que brilha no sinalizador. Parece que alguém corre entre os degraus, porque ela vem cada vez mais na minha direção e, quanto mais chega perto, mais cresce o calor dentro de mim.

É então que me viro para meu pai, com lágrimas nos olhos, e pergunto porque ele decidiu me trazer para o lugar que mais me lembra meu irmão.
“Você já está sentindo, filha?”, perguntou ele, os olhos marejados. “Este lugar não te lembra seu irmão. Este lugar guarda seu irmão. Ele está aqui agora. Correndo quente nas veias do seu corpo. Você já está sentindo?”.

3º lugar no Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2022