A exposição temporária “22 em Campo”, realizada pelo Museu do Futebol com a curadoria de Guilherme Wisnik, estabelece relações entre a Semana de Arte Moderna de 1922 e o futebol, observando a importância de ambos para a formação da identidade do povo brasileiro. Além disso, a mostra procura demonstrar o quanto o evento, que completou 100 anos, e o referido esporte estão intrinsicamente conectados ao processo de urbanização. Mário de Andrade, um dos principais idealizadores da Semana, foi entusiasta das grandes novidades que chegavam a São Paulo naquele período, e registrou, em suas obras, as diversas formas de vivenciar a cidade.
O célebre escritor, nascido em 1893, foi morador de um dos bairros de várzea mais conhecidos da cidade: a Barra Funda. Esteve instalado ali durante 24 anos e pôde ver de perto a sociabilidade de camadas populares, com destaque para a colônia italiana e também para a comunidade negra, esta última territorializada nos porões das casas da Barra Funda de Cima. Diferentemente do Rio de Janeiro, onde a população segregada subiu aos morros, na capital paulista os grupos sociais marginalizados estavam localizados nas baixadas da cidade, ou seja, nas várzeas dos rios, com destaque para o Tamanduateí e o Tietê. Vale dizer que “a desvalorização do espaço da várzea” foi associada também “à progressiva desvalorização de seus moradores”, conforme destaca a professora Odette Seabra.
O futebol foi apropriado por esses moradores das várzeas e logo se popularizou. Ele mobilizava um grande número de pessoas, contribuindo para a afirmação das particularidades por exercitar as diferenças culturais e possibilitar o exercício do lúdico: “negros formavam seus times e grêmios; organizavam festivais entre os times homólogos, como também os faziam os times de colônia”. O bairro, dentro desse contexto histórico, abrigava uma espécie de “organização da vida”, reforçando a identidade e o senso de comunidade. Fosse ele étnico ou fabril, garantia em si singularidades que o fazia enquanto bairro, sem deixar de ser, também, “uma necessidade da industrialização” (SEABRA, 2008).
Dessa maneira, publicados originalmente na revista América Brasileira, “Os Contos de Belazarte” foram lançados mensalmente entre os anos de 1923 e 1924 na coluna que se chamava “Crônicas de Malazarte”, e somente no ano de 1934 tornaram-se livro. Neles, Mário de Andrade utilizou-se de uma narrativa recheada do “português falado”, muito comum em suas obras. Além disso, debruçou-se sobre o cotidiano de famílias italianas concentradas principalmente na Lapa, bairro operário da zona oeste da capital paulista, situado na várzea do Rio Tietê que, a essa época, ainda se encontrava meândrico. O lugar contava com a presença da ferrovia e da territorialização das indústrias que marcavam profundamente os ritmos da vida dos moradores. Em linhas gerais, a região inseria-se no contexto do movimento de migração de uma ordem agrária para uma ordem urbana (MORSE, 1970).
Assim sendo, Mário faz uma caracterização do cotidiano dessa população mais simples que, embora estivesse em um lugar mais afastado da região central, era afetada pelo processo de modernização da cidade. Ao longo dos contos, entre amores, desamores, causos do dia a dia e finais trágicos, o futebol aparece como elemento presente na vida dos habitantes do bairro.
“João era quasi uma Rosa também. Só que tinha pai e mãe, isso ensina a gente. E talvez por causa dos vinte anos… De deveras chegara nessa idade sem contato de mulher, porém os sonhos o atiçavam, viva mordido de impaciências curtas. Porém fazia pão, entregava pão e dormia cedo. Domingo jogava futebol no Lapa Atlético. (…) No domingo ele foi um zagueiro estupendo. Por causa dele o Lapa Atlético venceu (…)” – O Besouro e a Rosa (Mário de Andrade, 1924)
Entre muitos elementos, é interessante observar o dia semanal da prática do futebol: o domingo. Esse dia simbolizava a contramão da lógica do trabalho: era voltado aos afazeres da comunidade, no qual os núcleos familiares se encontravam para atividades lúdicas no entorno do próprio bairro e de bairros vizinhos, promovendo mobilidade e festejos pela cidade. Vale lembrar que, neste período, as sedes dos clubes representavam importantes espaços de sociabilidade, com atividades diversificadas, correspondendo, muitas vezes, a uma certa extensão do lar.
O curioso diálogo entre dois irmãos, Aldo e Tino, retirado do conto “Caim, Caim e o resto” é muito valioso, pois, além de reforçar o domingo como dia semanal da prática do futebol, revela-nos informações acerca do Palestra Itália (atual Palmeiras), em meados da década de 1920.
— Vamos no jogo domingo, Tino?
— Não vale a pena. A Palestra vai perder. Bianco não joga.
— Mas Amílcar.
— Você com seu Amílcar!
Caim, Caim e o Resto (Mário de Andrade, 1924)
Mencionado no conto de Mário de Andrade, Amílcar Barbuy nasceu no ano de 1893 na cidade de Rio das Pedras no interior paulista e migrou com sua família para o bairro do Bom Retiro, na capital do estado, no início do século XX. Na Paulicéia, tornou-se um dos principais jogadores de futebol de várzea das décadas de 10, passando por times como o Galopino, o Guaianazes e o Botafogo do Bom Retiro. Em 1912, chegou ao Sport Club Corinthians Paulista e tornou-se um dos principais jogadores daquela geração. De acordo com o pesquisador Maurício Sabará, Amílcar foi “o primeiro grande jogador da história corinthiana”.
No ano de 1924, porém, foi contratado pelo Palestra Itália. É importante lembrar que, àquele momento, como coloca Marco Aurélio Duque Lourenço, a rivalidade entre Palestra e Corinthians já ganhava destaque, com jogos acirradíssimos e tensão entre as duas torcidas. E foi nesse contexto que Amílcar chegou ao clube alviverde. Desse modo, é possível que o desconforto do personagem do conto de Mário de Andrade com relação a Amílcar tenha ligações com sua identificação com o clube alvinegro. No entanto, o ex-jogador logo fez questão de demonstrar o seu brio dentro de campo, conquistando o Campeonato Paulista de 1926 ao lado de Bianco e Heitor.
Entre suas passagens pela Seleção Brasileira, destaca-se a participação no Campeonato Sul-Americano do ano de 1922. O torneio ocorreu no Rio de Janeiro, no Estádio das Laranjeiras, entre os meses de setembro e outubro, e o Generalíssimo, apelido pelo qual Amílcar ficou conhecido, foi um dos principais destaques daquela seleção, ao lado de Heitor e Neco.
Nas palavras de Bernardo Buarque de Hollanda, Mário de Andrade enxergava o futebol como “moda fútil entre as inúmeras que aportavam da realidade europeia”, olhar que irá mudar na década de 1930, muito por conta da profissionalização do futebol e da inserção de jogadores negros: “o bom desempenho dos jogadores de origem negra abre a brecha para a associação entre a identidade esportiva e o diferencial étnico de constituição do povo brasileiro”. Por outro lado, são extremamente ricos e importantes os relatos anteriores a esse período, uma vez que o olhar atento de Mário de Andrade para a cidade corrobora para um conhecimento da vida cotidiana dos mais simples em uma Paulicéia que se transformava.
Vale ainda comentar que, Mário de Andrade, assim como outros modernistas, compreendia o valor das culturas populares, e “Os Contos de Belazarte” reforçam essa visão peculiar ao fazer protagonistas agentes sociais amplamente marginalizados, reiterando a importância da identidade, perpassada pela territorialidade do bairro e de suas grafias. Para tanto, o autor de Macunaíma, apelidado por Antônio Cândido de “poeta andarilho”, caminhou pelos meandros das várzeas, onde também o futebol se propagava. Ao perguntar: “Água do meu Tietê, onde me queres levar?”, certamente poderíamos responder: ao caminho da bola, grande poeta!
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Os contos de Belazarte. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, 2008. 168 p.
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O futebol como alegoria antropofágica: modernismo, música popular e a descoberta da “brasilidade” esportiva. Artelogie, Paris, v. 1, p. 163-175.
LOURENCO, Marco Aurelio Duque. Um rio e dois parques: a formação da rivalidade entre Corinthians e Palestra Itália durante o período de construção de seus estádios (1917-1933). 2013. 118 p.
SABARÁ, Maurício. O Generalíssimo Amilcar Barbuy. São Paulo: GraphQuality, 2015. 100 p.
MORSE, Richard McGee; KERBERG, Maria Aparecida Madeira. Formação histórica de São Paulo: de comunidade à metrópole. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. v. 30.
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder. Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo. 1987. 243 p.
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Futebol: do ócio ao negócio. In: DEBORTOLI, José Alfredo Oliveira; MARTINS, Maria de Fátima Almeida; MARTINS, Sérgio (org.). Infâncias na metrópole. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 205 p.
Agradecimento ao colega Arthur Major, Educador do Museu Casa Mário de Andrade, pelos importantes diálogos e trocas!
Everton Apolinário
Pesquisador do Centro de Referência do Futebol Brasileiro.