Olhares sobre coleções varzeanas no acervo do Museu do Futebol

Em novembro de 2024, entrou em cartaz no Museu do Futebol a exposição temporária Vozes da Várzea, a primeira dedicada ao futebol amador paulistano. A mostra é uma homenagem a essa prática do futebol democrática, plural, viva, atemporal, que mobiliza a cidade e a Região Metropolitana de São Paulo. Para quem não sabe, o futebol de várzea paulistano marcou não apenas a origem oficial desse esporte que tanto amamos no país, lá com Charles Miller na Várzea do Carmo em 1895, mas também a fundação do Centro de Referência do Futebol Brasileiro, aqui no Museu do Futebol, durante seu projeto de implantação entre 2011 e 2013. Ao longo destes doze anos de atuação, o CRFB angariou mais de 20 coleções ligadas ao tema. 

Com a finalidade de produzir novos conhecimentos e qualificar os dados coletados sobre o futebol de várzea presentes no acervo do Museu, foi lançado, em 2024, o 2º Edital de Jovens Pesquisadores. Ao todo, foram 68 inscrições homologadas. A bacharel em Direito Beatriz Calheta Silva e o cientista social Evandro Lima dos Santos, residentes de São Bernardo do Campo e Taboão da Serra, respectivamente, foram os selecionados. No texto a seguir, ambos relatam como tem sido o desenvolvimento de seus processos de pesquisa, que tem previsão de serem concluídas em maio de 2025. Com a maestria daquelas e daqueles que atuam tanto no “terrão” quanto em gramados sintéticos, eles tabelam e nos brindam com algumas imagens retiradas de nosso acervo. 

As camisas e as suas marcas

Por Evandro Lima

O projeto de pesquisa As camisas e as suas marcas: periferia e futebol de várzea, desenvolvido para o Edital Jovens Pesquisadores, tem como objetivo analisar fotografias do acervo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro relacionadas ao futebol de várzea. A investigação parte da compreensão dos vínculos estabelecidos entre as comunidades locais e as equipes, explorando as marcas distintivas desses times e o sentimento de pertencimento, com foco na relação entre os clubes e os bairros de origem. Além da pesquisa documental com o acervo, está sendo conduzido um trabalho de campo com equipes de futebol de várzea de diferentes divisões, localizadas em cidades da Região Metropolitana de São Paulo. Essa abordagem visa aprofundar a análise das conexões entre torcida, time e comunidade, enriquecendo a compreensão do fenômeno do futebol de várzea em seu contexto social. 

Logo nos primeiros contatos com o acervo fotográfico, eu me deparei com a seguinte frase na camisa de um varzeano: “Humilde sim!!! Bobo não!!!”, quase escapando do enquadramento da fotografia no canto inferior esquerdo, não era o alvo dos olhos de quem a fez. A camisa mencionada por ser vista na imagem acima, presente na Coleção do EC São Paulino. Além desta, diversas fotografias de diferentes coleções também apresentam o que tem sido trabalhado na pesquisa como “marcas distintivas”. Essas marcas representam os pilares fundamentais do percurso traçado até o presente, orientando as ações de preservação, pesquisa e difusão. Entre elas, destacam-se o lema do time e/ou da torcida, as cores, o nome das quebradas, a região e/ou a cidade, as mascotes e uma série de outros códigos, sempre presentes em camisas, adereços, faixas e bandeiras dos times de várzea da cidade de São Paulo e Região Metropolitana.  

Equipes reunidas para campeonato da categoria 35 anos no campo do E.C. São Paulino. Poá-SP, sem data, Acervo Museu do Futebol | Coleção EC São Paulino | Direitos Reservados.
Primeira fotografia do time XXV de Agosto. São Paulo-SP, 1947, Acervo Museu do Futebol | Coleção XXV de Agosto | Foto: Waldir Santana.

O trabalho de pesquisa nos acervos do CRFB tem sido desenvolvido a partir da compreensão de outros tipos de memória, constituída “de documentos e fotos, de montagens e narrativas, outras histórias e memórias [que] podem despertar e colocar em xeque histórias já sedimentadas e oficializadas” (Triana, 2022, p. 406). Esse trabalho de dar sentido a algo que aparentemente não segue uma ordem se aproxima muito do trabalho de campo etnográfico. O arquivo é o campo, com toda sua desordem e falta de informação que, ao mesmo tempo, são informações demais para dar conta: pesquisas, fotografias, entrevistas, notícias, memórias, recortes de jornal etc.

A preservação, que é complementada pelo trabalho de pesquisa, tem sido realizada por meio da catalogação da Coleção XXV de Agosto, da Freguesia do Ó, tradicional time de várzea da cidade de São Paulo. Esse trabalho é realizado a partir de diretrizes técnicas para preservação de acervos junto da equipe responsável pela documentação presente no CRFB. A imagem ao lado, primeiro registro fotográfico do XXV de Agosto, foi feita por Waldir Santana em 1947, quando seus fundadores ainda eram jovens garotos realizando o sonho de formar um time de futebol que hoje tem 77 anos de história, um exemplo notório da importância da preservação desses acervos. A descrição do conjunto documental presente nessa coleção é um trabalho que colabora com os papéis desempenhados pelo Museu do Futebol nas áreas científica, cultural e educativa.

Durante o processo de pesquisa, diversas visitas a campo foram realizadas em jogos amistosos e campeonatos nas cidades de Taboão da Serra, Embu das Artes e Itapecerica da Serra. A pesquisa pretende se estender também para as cidades de Caieiras, Ferraz de Vasconcelos e Santo André, abrangendo uma pequena parte da Região Metropolitana de São Paulo. Esse trabalho, juntamente com a pesquisa do acervo, resultará em uma exposição virtual (como outras já realizadas pelo Museu do Futebol) com a temática das marcas distintivas, mobilizando o material presente no acervo do CRFB e a fotografia como ferramenta de pesquisa de campo. A exposição terá como objetivo difundir o acervo fotográfico da instituição e trazer para o público a presença do futebol de várzea nas periferias da cidade, fora do circuito clássico da várzea paulistana formado inicialmente ao longo das margens dos rios Tietê e Tamanduateí. 

Oração dos jogadores do Revolução Jardim Record antes do “Clássico da quebrada” contra o Unidos do XV do Jardim Record. Taboão da Serra-SP, 2024. Acervo pessoal | Foto: Evandro Lima.

Um time de várzea é sempre formado pela comunidade em que está inserido, construindo sua memória e identidade junto ao chão de onde vem, prática que está além do lúdico, das linhas marcadas de cal e dos alambrados, está inserida também em outro jogo, o das representações sociais. E é a partir dessa compreensão do futebol de várzea que está sendo desenvolvido também um artigo científico que coloca em diálogo o futebol, a periferia e as marcas distintivas presentes nesse mundo varzeano, consolidando os processos desenvolvidos ao longo da pesquisa que foram brevemente relatados neste texto.

Mobilização e proteção das referências culturais da várzea pelas varzeanas

por Beatriz Calheta 

Na graduação, iniciei uma pesquisa dedicada a compreender a possibilidade de enquadrar as práticas do futebol de várzea enquanto bens culturais de dimensão material — campos, acervos esportivos e seus arquivos, bandeiras, camisas, troféus, estruturas de agremiações — e imaterial — o torcer, o fazer musical, as rodas de samba, os encontros semanais (comer, beber, confraternizar, “resenhar”), os campeonatos e celebrações organizadas a partir dos clubes.  

A escolha do tema de pesquisa para o edital, a partir disso, foi quase intuitiva. Dentre as coleções do CRFB, estão reunidos registros de um espaço que faz parte de minha própria trajetória na várzea: o Santa Marina Atlético Clube (SMAC), da Água Branca, hoje com as atividades suspensas em razão de uma reintegração de posse levada a cabo por uma multinacional.  

O Santa Marina possui um acervo esportivo expressivo, que guarda centenas de itens entre fotografias, recortes de jornais de época, troféus, medalhas, uniformes, flâmulas, documentos da associação e da fábrica que deu nome ao clube. Antes da reintegração, esse acervo ficava disponível ao público. Hoje, a coleção que integra os arquivos do Centro de Referência do Futebol Brasileiro, e que contempla apenas uma parcela das fotos que o SMAC preservava — ainda assim, são mais de 300 fotografias —, é a principal fonte de acesso a essa história. Essa coleção chegou ao Museu do Futebol porque foi preservada por muitas pessoas que passaram pelo clube, em especial mulheres como Rose Ingegnere, que o administrava até a reintegração. Olhando seu conjunto, percebe-se nitidamente que as mulheres não só exerceram um papel fundamental para resguardar a memória do clube, mas também que elas sempre estiveram lá. 

Torcedoras uniformizadas do SMAC, Estádio Nicolau Alayon, São Paulo, 1948. Acervo Museu do Futebol | Coleção Santa Marina AC | Direitos Reservados.

Em uma das fotografias digitalizadas pela equipe do CRFB, por exemplo, vê-se uma torcida formada majoritariamente por mulheres e meninas, uniformizadas com trajes similares, ocupando as tribunas do Estádio Nicolau Alayon, casa do tradicional Nacional Atlético Clube, parceiro de longa data do SMAC. A imagem data de 1948, na ocasião em que foram realizadas as festividades em celebração aos 35 anos do então Santa Marina Football Club. No auge do decreto que vetou a prática de futebol por mulheres no Brasil (Westin, 2023), elas organizaram uniformes e lotaram arquibancadas em apoio aos que podiam estar dentro de campo. Nesse dia, como em tantos outros, elas de fato entraram em campo, legitimando sua presença proibida nesse espaço enquanto levavam troféus e ostentavam faixas e bandeiras. 

A idealização do produto de difusão, junto à catalogação do acervo do SMAC, compartilha da percepção advinda do trabalho com esse material: a de que as mesmas mulheres que atuam como guardiãs dessas memórias, preocupadas em mobilizar essas referências culturais, operam também como articuladoras de seus territórios em constante disputa — como usualmente são os espaços da várzea. Enquanto meio de expandir e ilustrar esse enfoque, está sendo desenvolvido um material audiovisual centrado na memória de três equipes e de suas varzeanas: o próprio Santa Marina Atlético Clube, o Centreville — bairro originado da ocupação que centenas de famílias promoveram em um condomínio abandonado em 1982 (e onde fundaram, em 1985, o time de várzea de mesmo nome) — e as Xondarias — time de mulheres Guarani Mbya da terra indígena localizada na Vila Jaraguá.  

O objetivo, através desses diferentes produtos de pesquisa, em seus métodos, é o mesmo: revelar que a apropriação do espaço ocupado pelos campos e clubes de várzea, objeto de intensa disputa em uma cidade que muda e cresce desenfreadamente, guarda, não por acaso, uma semelhança com a maioria dos movimentos de bairro ou de vizinhança: uma presença de mulheres que se articula pela preservação de espaços comunitários e das práticas neles realizadas (Tavares, 2008, p. 20). 

As pesquisas sobre o futebol de várzea que estão em curso não se limitam à qualificação dos acervos já pertencentes ao CRFB. Demanda envolver, também, as quebradas e comunidades que mobilizam essa sociabilidade única de viver o futebol. O desenvolvimento desses trabalhos, que abarcam a catalogação dos acervos escolhidos e a disponibilização dos produtos de difusão mencionados, reforçará algo que a própria exposição temporária “Vozes da Várzea” demonstrou: que a história da várzea é a história da cidade, e não se compreende a Região Metropolitana de São Paulo ou suas periferias sem considerar as referências culturais, rituais, símbolos, dinâmicas e disputas que marcam as experiências varzeanas.  

Referências

  1. WESTIN, Ricardo. Futebol feminino já foi proibido no Brasil, e CPI pediu legalização. Agência Senado, Brasília, v. 103, 04 ago. 2023. Acesso em: 17 jan. 2025. 
  2. TAVARES, Rossana B. Forma urbana e relações de gênero. In: GOUVEIA, Taciana. (org.). Ser, fazer e acontecer: mulheres e direito à cidade. Recife: SOS Corpo, 2008. 
  3. TRIANA, Bruna. Ricardo Rangel e a fotografia moçambicana: arquivos, história e memórias. Anais do 42° Encontro ANPOCS. Caxambu, 2018. Acesso 01 mar. 2025. 
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