
Fotografia colorida de aproximadamente 10x15cm que apresenta onze pessoas no primeiro plano utilizando vestes nas cores azul, preto e branco. Algumas estão sentadas em uma mureta, sobre tecido com as mesmas cores, outras encontram-se em pé, logo atrás do parapeito. Grande parte dessas pessoas retratadas usa chapéus em formato de guarda-chuva e aparece com braços erguidos, fazendo pose e sorrindo.
Nas laterais e no centro da imagem, bandeiras compõem a cena. Ao fundo, o restante das arquibancadas, uma estrutura que aparenta uma obra no local e uma placa de proporções métricas em que é possível ver quase todo o escudo de um clube de futebol. Acima desse logo, está escrita a palavra “campeão”.
O registro, produzido por Ricardo Chaves[1] , no segundo semestre de 1979, retrata a festa de torcedores da Coligay, aficionados pelo Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. O estádio em questão é o Olímpico, localizado na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Na ocasião, o local passava por obras para a construção do lance de arquibancadas superior, que seriam finalizadas em 1980. O Grêmio tinha acabado de se tornar o campeão estadual naquele ano.
A importância do retrato dá-se não apenas em documentar aquela que é tida como a primeira torcida integrada de pessoas LGBTQIAPN+ do Brasil, a Coligay, mas também em valorizar a trajetória dessa comunidade no futebol, a qual foi e ainda é silenciada e vítima de discriminação. Sua fundação ocorreu no ano de 1977, em uma época em que o Grêmio vivia um jejum de oito anos sem títulos enquanto o arquirrival Internacional empilhava taças. Sua primeira aparição nos estádios data de 10 de abril, durante a partida Grêmio 2X1 Santa Cruz, válida pelo Campeonato Gaúcho de Futebol Masculino.
Naquele momento, o empresário Volmar Santos reuniu funcionários e frequentadores da Coliseu, boate que administrava, para fundar uma nova torcida a fim de apoiar o clube. No entendimento deles, a torcida gremista de forma geral era pouco atuante, manifestando-se somente quando o time estava bem e permanecendo sentada e em silêncio na maior parte do tempo. Pretendiam, portanto, se distinguir por sua performance nas arquibancadas, sobretudo se comparadas às duas torcidas organizadas gremistas de então, a Eurico Lara (oficial) e a Força Azul (independente). De acordo com Luíza Aguiar dos Anjos, que desenvolveu uma tese de doutorado sobre a história da Coligay[2], quatro aspectos a diferenciavam: “torcer ininterrupto”, “animação”, “estética chamativa e original”, “gestualidade e formas de interação marcadas pela afeminação”.
Reunindo essas características, a torcida não apenas explicitava a “homossexualidade de seus integrantes”, mas se valia de tal identidade sexual para construir uma forma de torcer. Visando performar esteticamente na arquibancada, seus associados confeccionavam faixas e bandeiras, e trajavam vestimentas “tradicionalmente femininas”, tais como: kaftans, chapéus, paetês e outros acessórios com as cores do Grêmio[3]. Soma-se ao impacto visual, o apoio sonoro de uma charanga e a entoação de cânticos e gritos fervorosos. Faziam, ainda, uso de coreografias, danças, rebolados e brincadeiras. Tudo isso estava sintetizado e enunciado na designação da torcida: Coligay, “Coli”, do nome da boate Coliseu, e “gay”, do público que a compunha.
Claro que houve resistências a sua eclosão nas arquibancadas gremistas. Mas a torcida resistiu, demonstrando sua fidelidade, assiduidade e amor ao clube durante aquela temporada que culminaria com o fim do jejum de títulos. Diante da conquista do estadual de 1977, ficou marcada como pé-quente. Se antes havia questionamentos, agora a toleravam ou mesmo a defendiam perante insultos de torcedores rivais: “São bichas, mas são nossas”[4].
Mais do que isso, a torcida colocou-se como um lugar de sociabilidade entre pessoas LGBTQIAPN+ no futebol. A partir dela, membros da mesma comunidade encorajaram-se a ir a estádios e se juntar com seus integrantes, independentemente de seu interesse por futebol ou vínculo torcedor com o Grêmio. A Coligay proporcionava-lhes acolhimento e proteção nos contextos do futebol e da presença LGBTQIAPN+ nos estádios.
A torcida continuou atuante nos estádios até os primeiros anos da década de 1980. Por questões particulares, o líder Volmar Santos retornou a sua cidade natal, e os demais integrantes não foram capazes de manter as atividades ao longo do tempo.
A agremiação surgiu exatamente em um contexto de irrupção de inúmeras torcidas dissidentes compostas por jovens em todo o país. Compartilhava com estas alguns valores como independência, fidelidade e ousadia. Da mesma forma, adotava uma estética visual e sonora surpreendente nos estádios. Buscava, do mesmo modo, se deslocar territorialmente para acompanhar o clube de devoção.
Havia, porém, ao menos dois elementos que colocava a Coligay do lado oposto desse movimento: virilidade e belicosidade. Afinal, ela vislumbrava outros sujeitos possíveis de serem legitimados como torcedores, inclusive com a adoção de performances não usuais. E promovia um espaço agregador e seguro a seus integrantes, buscando fugir de confrontos físicos.
A proeminência da masculinidade cisheteronormativa e a crescente violência que se seguiu nos anos 1980 e 1990 explica a ausência de outras torcidas LGBTQIAPN+ naquele período. Por mais que a imprensa tenha noticiado a existência de agremiações semelhantes em várias capitais do país na mesma época, nenhuma adentrou o palco futebolístico como a Coligay, nem mesmo foi tão longeva e notória como ela.
É exatamente por essa razão que, no ano de 2024, a foto de Ricardo Chaves serviu de inspiração para que a equipe do Museu do Futebol inserisse em seu percurso expositivo uma placa em homenagem à torcida. O conteúdo faz parte da sala Almanaque da Bola, que, como o próprio nome sugere, fala de tudo um pouco: histórias, números, curiosidades, regras, humor e muito mais, valendo-se sempre de uma linguagem lúdica e ancorada em recursos audiovisuais, interativos e acessíveis. Em um conjunto de placas que trata da cultura torcedora no Brasil, nada mais democrático do que lembrar dessa experiência fundante e vanguardista da Coligay. Se depender desta instituição, sua memória nunca será esquecida e seguirá sendo um exemplo de inspiração e pluralidade.

Marcel Diego Tonini
Pesquisador Sênior do Centro de Referência do Futebol Brasileiro
Dóris Régis
Técnica em Documentação do Centro de Referência do Futebol Brasileiro
NOTA
1. Ricardo Chaves (1951-2025), conhecido como Kadão, foi um fotógrafo gaúcho que atuou em diferentes veículos de comunicação do país. Sua carreira começou no início da década de 1970 e incluiu passagens por periódicos como Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Zero Hora. Também foi colaborador nas revistas Veja, Placar e Quatro Rodas, da Editora Abril.
2. ANJOS, Luíza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. 2018. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Porto Alegre, 2018. p. 58-59.
3. Idem, p. 8 e 359.
4. Idem, p. 67.