Por Luciano S. R. Dias

14 de abril de 2022, quinta-feira, quatro anos, sete meses e quinze dias da emissão do “Certificado de Habilitação para Adoção”, o celular deixado à mesa de centro da sala de estar toca. Atendo. Do outro lado da linha uma voz impessoal informa: sai solidão, entra menino de 7 anos.

O coração da torcida de uma pessoa só acelera. O candidato a pai dribla a inércia, acelera em direção à igreja, tabela com o Divino, passa pela Quinta-feira Santa, pela Sexta-feira da Paixão, pelo Sábado de Aleluia, pelo Domingo Páscoa… na Segunda-feira Especial, liga para o abrigo onde vive o pequeno torcedor Cláudio, e marca uma visita.

Uma eternidade de sete dias passada e vou ao encontro do futuro. É 25 de abril, dia de festa. Bolo, doces e cachorro-quente para comemorar o aniversário do coleguinha de abrigo Jorge.

Antes dos parabéns, visto a camisa de tio e entro em campo para jogar futebol totó com Cláudio. Parte menos talentosa da dupla, apenas corujo. Renuncio à concentração pela felicidade de admirar a destreza do goleador nato. Talento único no comando das varetas e nos chutes perfeitos em giros de 180 e 360 graus. Vencemos com 6 gols dele a 5 frangos meus.

Antes do fim da partida, arrisco e lanço a pergunta 100 milhões de euros: “qual o seu time, Cláudio?”.

A certeza de ouvir “Fluminense” não dura dois segundos. “Vasco”, responde sem tirar os olhos da bolinha. Sigo o manual do bom adotante e, escondendo minha frustração, digo apenas “Vasco, que legal!”.

Fim de jogo. Me despeço do time dos tios.

Terça, 26 de abril, renasço pelas mãos do filho. O centroavante do totó me convoca para ser pai.

Haaaaaja coração.

É só alegria. Não.

Existe um navegador português entre nós. Uma espinha de bacalhau entalada na garganta.

Tudo quase perfeito. Meu filho, um menino lindo, saudável, amável, rei do totó e do bafo bafo, pipeiro de primeira e… vascaíno. Mas a nau lusitana iria naufragar. Algo me dizia que Cláudio, no calor da partida, se confundiu. Minha intuição não falhou.

Sexta, 29 de abril, reformulo a pergunta: “Você é mesmo vascaíno, filho?”

“Não. Sou Flamengo. Adoro o Gabigol”.

Fiquei rubro e quase infartei. Mantive a elegância tricolor diante da espontaneidade da frase do agora filho e da presença da assistente social, que, animada, completou: “ainda tem o Bruno Henrique”.

Conformado. Ou melhor, inconformado, passei dias pensando: “como o meu filho pode ser vascaíno um dia e flamenguista no outro”. Na semana seguinte, terça, 3 de maio, recorro ao VAR. No fim da tarde, no gramado nos fundos do abrigo, sentado ao lado de Cláudio e da sua amiga, a Cristina, quis tirar a prova dos nove.

“Filho, afinal de contas, você torce para o Vasco, para o Flamengo, para…”. Antes de pronunciar Fluminense, Cristina mostra o cartão vermelho e, com a frieza de um juiz alemão, afunda minha crença em milagre: “Ele era Vasco e trocou para o Flamengo”.

Silêncio na arquibancada. Recolho minha bandeira. Mas, aos 44 minutos do segundo tempo, o ex-vascaíno troca a emoção pelo afeto e confirma a minha fé na humanidade:

“Posso ser tricolor se você quiser, pai”.

Silêncio na arquibancada. O pai abraça o filho e troca a emoção pela liberdade de escolha. “Não, meu filho. Você pode ser o time que quiser… até Flamengo”.

 

Menção honrosa no Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2022 

Ilustração ode uma trave de pepolim com jogadores todos com cores diferentes