Ilustração roxa com desenhos em traço branco bem fino, mostrando uma TV com palha de aço na antena, uma bola sendo chutada no ângulo e um morro ocupado por casebres.

Por Juliana do Nascimento Correia
Terceiro lugar no 2º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2023 

 

Manhã de domingo de verão carioca, em 2023. No campinho de futebol, um minuto de silêncio antes da partida foi o suficiente para eu sofrer de saudade. Agradeci a existência de dona Ketu, mulher preta, enfermeira aposentada do hospital municipal que funciona no bairro. Viúva, não teve filhos, mas foi a grande matriarca aqui da comunidade. 

Engajada em tudo o que trouxesse melhorias às nossas vidas, costumávamos dizer que ela era também árbitra, técnica, preparadora física e torcedora histórica dos times de futebol que se multiplicaram no alto do morro. Tudo ao mesmo tempo. Apaixonada por futebol, sempre incentivou as meninas para que também jogassem no campo de terra batida. Mediou tensões entre os garotos, inclusive os mais temidos, famosos não necessariamente por serem craques da bola. 

Dias antes, minha mãe contou que toda a comunidade se reunia em volta da televisão de dona Ketu para acompanhar os jogos da Copa do Mundo de 1962. Ela ganhou o aparelho de uma médica do hospital onde labutava, tornando-se a primeira moradora do morro a ter uma TV. E colocava o aparelho para fora de casa para que toda a vizinhança acompanhasse as partidas. Enquanto o povo se aglomerava, dona Ketu enrolava um pedaço de esponja de palha de aço à antena do televisor, tentando garantir a transmissão. A esta altura, as crianças se deliciavam com a pipoca preparada por ela, disponível em uma grande bacia de plástico que circulava de mão em mão. 

Quando a Seleção Brasileira marcava um gol, a euforia era geral. Até quem estivesse brigado se abraçava, comemorando. 

Ela viu nascer e crescer muitas gerações de pessoas aqui do morro. Faz parte da vida de cada um de nós. Não havia quem não lhe respeitasse, quem não lhe tomasse a bênção. Não havia quem não tivesse uma boa lembrança e não estivesse em lágrimas, assim como eu, durante aquele minuto de silêncio. 

Em 1990, estive pela primeira vez no Maracanã. Eu tinha apenas 8 anos de idade e, graças aos passeios organizados por ela, entrei no maior estádio do mundo (à época). Dona Ketu conhecia muita gente no hospital, recebia convites para visitações e eventos, mas não aceitava ir sozinha. Fazia questão de levar a comunidade junto, da forma que fosse possível. No caso do Maracanã, não era diferente: ia sempre acompanhada por um grupo de crianças e adolescentes do morro. 

Tal passeio ficou marcado em meu coração: lembro dos vestiários, das fotografias e camisas expostas. Sem contar a hora de pisar aquele gramado, palco de grandes momentos do futebol. Na ocasião, nos foi permitido cobrar um pênalti. Ela, que não perdia a oportunidade de nos educar, se aproximou de mim e disse para que eu chutasse a bola lá onde a coruja dorme. 

– Dona Ketu, onde é que a coruja dorme?, questionei. 

Ela gargalhou alto. De repente, ficou bem séria, correu, deu um bico na bola com toda força que alcançou o ângulo superior esquerdo do gol. A rede balançou logo em seguida.  

– Viu?, ela me respondeu, sorrindo. 

Dona Ketu continuará viva em meu coração. Em cada detalhe na ornamentação da favela nas próximas copas, em cada drible no campinho e nos desafios cotidianos, em cada vez que um gol for marcado lá, no ângulo entre a trave e o travessão. Bem onde a coruja dorme.