Ilustração roxa com desenho em traços brancos finos, mostrando um osso humano, um teclado e uma montanha russa.

Por Julia Leite
Segundo lugar no 2º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol – 2023 

Qual é a velocidade de um gol? Chutando um número: 100 km/h. O equivalente a um guepardo correndo. Um furacão. Uma rolha de champanhe voando no ano novo. Uma montanha russa. Um frio na barriga. A velocidade de um gol é exatamente a mesma velocidade com que o discurso de Marta na eliminação da Copa em 2019 atinge meu peito: “o futebol feminino depende de vocês para sobreviver”. 100 km/h é a velocidade da minha autoestima. A velocidade do meu gol é a mesma fração de instantes com que a boca dos meninos que desmereciam meu futebol se cala. A velocidade de um gol é a velocidade de uma glória florescendo num campo. 

Não consegui medir a velocidade da interrupção. Foi tão rápido quanto cortar um parágrafo mas eu queria ter continuado na linha, jogando. 100 km/h foi a pressa do meu pai no carro quando contei que havia me lesionado. Sei que no instante em que a ruptura acontece, cabe um grito de dor e 3 vislumbres: o raio X da perna torta de Garrincha, Neymar saindo com o tornozelo inchado da última Copa e a Marta emocionada ao jogar pela primeira vez após a recuperação de 11 meses de uma lesão. São imagens que me assustam, mas me convocam. 

Há um mês rompi completamente dois ligamentos e desde então venho me esforçando para me recuperar. Aí perguntam: “por que você não tenta jogar tênis ou andar de bike?” Nada contra, mas a bicicleta que conheço é o mortal de costas que você dá para chutar a bola. Jogar futebol é como um idioma, você não vai entender se não for fluente. E certas sensações não têm tradução em outra língua. Eu posso falar “I miss you” ou “te echo de menos”, mas nenhuma expressão enche minha boca como “saudade”. Futebol é minha “saudade” guardada na ponta da língua. Na ponta do pé. Eu gosto de acordar feliz numa segunda porque vou jogar, de escolher qual das minhas camisas do Brasil vestirei: a da seleção de 94 – ano em que nasci – ou a de 70 – “ano que Pelé brilhou, quem sabe não brilho hoje também?” -, gosto de fazer um passe decisivo para outra pessoa brilhar, de ser elogiada por correr muito, do cheiro de amaciante dos coletes toda vez que alguém traz de casa, gosto de fazer gol no time do garoto que ninguém consegue parar porque ele tem 2 metros de perna, gosto da Pabllo Vittar cantando “seu amor me pegou” na caixa de som – hino de torcida séria –, gosto de dedicar mentalmente meus gols a pessoas que amo como se bolas fossem estrelas cadentes e, por mais que eu odeie me lesionar, gosto da forma como meus colegas me carregam com cuidado para seguir em frente. 

Eu diria que essa é uma carta a todos que me perguntaram recentemente se eu vou continuar jogando. Pois saibam: eu já jogo. A Marta declama com as pernas o que eu driblo com os dedos. Aqui, posso fazer uma palavra dar trivela e encontrar algum canto em alguém. Sim, a página é um pênalti pronto para te atravessar.  

Autoriza o árbitro. 

 

quando meu pé
não for o suficiente
meus dedos
me tornarão
desimpedida
na boca do gol
na boca do povo
chuto palavras
preencho vazios
a 100 km/h
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