Notas sobre coleções de mulheres no acervo do Museu do Futebol

Desde o ano de 2015, o Museu do Futebol tem se dedicado a retratar, pesquisar e celebrar o futebol de mulheres no Brasil. Ao longo dessa trajetória, já aconteceram duas exposições temporárias — Visibilidade para o Futebol Feminino, em 2015, e CONTRA-ATAQUE! As Mulheres do Futebol, em 2019, sete exposições virtuais, um audioguia, três editatonas e muitos eventos da programação cultural sobre o tema. Somando-se a esses esforços, no início deste ano de 2022, foi lançada a primeira edição do Edital de Seleção de Jovens Pesquisadores(as), voltado para recém-graduados(as) ou pós-graduandos(as), a fim de produzir conhecimento acerca do futebol feminino e de mulheres do futebol no Brasil.  

Por meio das coleções do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), as pesquisas deveriam tratar da história de atletas profissionais e amadoras, árbitras, treinadoras, dirigentes, locutoras, jornalistas, dentre outras, que atuam ou atuaram na construção da modalidade no país. Entre algumas das intenções do edital estava a de contribuir para a qualificação do acervo, produzir materiais escritos sobre a temática e, também, gerar produtos para a difusão do conhecimento. 

Ao todo, foram mais de 70 inscrições homologadas provenientes de diferentes Estados do Brasil. Com a possibilidade de realizar a pesquisa remotamente, foram aprovadas as pesquisadoras Natália Silva, jornalista de Malhada de Pedras, na região sudoeste da Bahia, e Taiane Anhanha Lima, historiadora de São Sepé, Rio Grande do Sul. No texto que se segue, as pesquisadoras relatam como foi viver essa experiência de oito meses como jovens pesquisadoras do Museu do Futebol. 

Um mergulho nas fontes orais do CRFB, por Natália Silva 

Antes de relatar a vivência em si, gostaria de compartilhar sobre a tranquilidade que marcou o processo do edital. Esse tipo de seleção tende a soar inviável, principalmente, para quem não nasceu, viveu e/ou estudou nos grandes centros. Nunca foi algo que me fez desistir antes de tentar, mas sei que pode ser um impeditivo para muita gente, então é para você que quero contar: se eu, que sou de uma cidade com menos de 10 mil habitantes, do interior do interior do sertão nordestino, entrei, você também pode entrar. 

Dito isso, a escolha pelas fontes orais para mim foi até óbvia, pois eu vinha da execução de um projeto em que tinha entrevistado mulheres negras brasileiras que trabalham ou vivenciam o futebol de algum modo. Por esse motivo, inclusive, assim que o edital saiu, muitas pessoas sugeriram que me inscrevesse com a perspectiva de seguir trabalhando com esse tipo de documento histórico. Além disso, eu imaginava que essa oportunidade poderia me ajudar a voltar para a universidade trabalhando com esse tipo de fonte. 

O primeiro olhar sobre o acervo foi muito especial, mas simultaneamente assustador. Se, de um lado, se abria um universo de possibilidades — e foi a oportunidade de acessar um material riquíssimo sobre a história das mulheres no futebol do Brasil —; por outro, durante algumas horas, eu não sabia muito bem o que fazer com toda aquela documentação ou se teria tanta capacidade de processamento. Como me foi dada autonomia de escolha — ponto que acho super válido ressaltar —, optei por seguir com a minha linha de trabalho, a partir do meu ponto de perspectiva no mundo: mulheres negras nordestinas. No entanto, após orientações iniciais e algumas leituras, escolhi ampliar o olhar e fechei o tema da pesquisa em um estudo sobre a história de mulheres não brancas nascidas no Norte e Nordeste brasileiro, a partir das narrativas de Alline Calandrini e Marta Silva. 

Separei trechos [1] das entrevistas que foram utilizadas na pesquisa e estão no acervo. Inicialmente, destaco falas delas sobre as experiências em suas terras natais. Nas palavras de Alline Calandrini:

“Eu não via nada de Futebol Feminino, a não ser, é… a Olimpíada, que eu lembro que eu assisti, uma vez, a Olimpíada e que a gente perdeu para os Estados Unidos. É a única lembrança que eu tenho, que eu vi o futebol feminino na TV. Então, eu não lembro de ver campeonato, não lembro de ver nada, inclusive, pra mim era um esporte que não era nem praticado aqui no Brasil. Pra mim, se eu quisesse jogar, eu teria que ir para os Estados Unidos porque não tinha nada no país. Não via nada, nada, nada.” (Alline Calandrini). 

 Já nas de Marta Silva: 

 “Então, eu via no futebol a opção que eu tinha pra poder fazer com que isso acontecesse, né? De ajudar minha família e tal porque era a coisa que eu sabia fazer de melhor. Então, foi aí que eu comecei a traçar esse plano de… se tornar um atleta profissional. E aí surgiu, aos quatorze anos, a oportunidade de vir pro Rio, de treinar no Vasco, de, enfim, me mostrar pra o Brasil, né? Porque, em Alagoas, um estado muito pequeno, na cidadezinha que eu nasci, com doze mil habitantes, só o pessoal da região que me conhecia. Ali, então, era uma oportunidade de eu me mostrar no Brasil e, quem sabe?, possivelmente chegar à seleção e ter a oportunidade de jogar uma Copa do Mundo.” (Marta Silva). 

Finalmente, Alline conta sobre sua relação com o futebol de mulheres, e Marta, na sequência, sobre suas impressões a respeito da evolução do mesmo. 

“Então, por mais que não seja muito fácil, eu não tenho é… o que reclamar em relação a isso porque tudo que eu conquistei, de fato, se me conhecem, me conhecem porque eu sou jogadora de futebol feminino, sou atleta de futebol. Então, bato no peito com orgulho isso. Levanto a bandeira do futebol feminino, sem dúvida alguma.” (Alline Calandrini). 

“As pessoas estão olhando pro futebol feminino de uma forma diferente, bem mais positiva, mas acredito que é mesmo essa questão da sociedade aceitar a modalidade e perceber que isso existe já há bastante tempo. […]Ainda bem que as coisas mudaram, né? E que continue mudando pra melhor porque o ser humano ser proibido de fazer o que gosta, sem ter nenhuma motivação, ou sem estar denegrindo ninguém ou machucando alguém, é uma coisa que não deveria ter existido nunca.” (Marta Silva). 

Além da produção do artigo científico, era preciso construir um produto de divulgação científica a partir da pesquisa. A princípio, pensei em produzir uma série de vídeos para as redes sociais, mas durante o processo me veio a idealização de um jogo educativo. Tive reunião com o Núcleo Educativo do Museu do Futebol e, após entender como poderia trabalhar, criei um jogo que foi apresentado no Seminário para divulgação das pesquisas realizadas. Ademais, o edital também previa a contribuição na catalogação e qualificação de informações do acervo do CRFB, de modo que trabalhei brevemente com a Coleção do Museu da Cidade de Recife e mais profundamente com a Coleção Aline Pellegrino. 

Desafios e possibilidades de se trabalhar com fontes escritas e iconográficas, por Taiane Anhanha Lima 

Em abril de 2022, começamos a pesquisar nas coleções disponibilizadas pelo CRFB. Foram várias opções, muitas ideias e caminhos de pesquisa que se desenhavam através de tantas fontes, como fotografias, recortes de jornais e documentos. Um material específico que me chamou atenção desde o primeiro momento eram as coleções de mulheres jornalistas, o qual, lendo com mais atenção, descobri ser sobre a Rádio Mulher. Até então, não conhecia essa rádio, nem todas aquelas mulheres presentes no acervo do CRFB. Mas, afinal, o que foi a experiência da Rádio Mulher? Foi uma iniciativa criada no início da década de 1970 na cidade de São Paulo que, aos finais de semana, se dedicava exclusivamente a narrar, comentar e entrevistar os mais variados jogos de futebol masculino. 

Comecei a pensar o quão inovador era esse fato para uma época que deveria ser ainda mais difícil ser mulher e falar ou comentar sobre o futebol (lembremos que naquele momento, de forma oficial, elas eram proibidas de praticar o esporte). Se ainda hoje mulheres jornalistas lutam para serem respeitadas, como seria naquela época? As fontes disponíveis trouxeram-me algumas respostas, mas, além disso, me fizeram entender mais sobre aquelas vivências que participaram de um programa sobre futebol, 100% feminino na década de 1970, em plena ditadura civil militar no Brasil. Ao final da pesquisa, eu já me sentia próxima dessas mulheres. Algumas delas já partiram, porém deixaram seu legado e uma história que merece visibilidade para inspiração de outras tantas que sonham em trilhar esse caminho do jornalismo esportivo.  

Nesses acervos, encontram-se diversos registros, principalmente imagens, fotografias pessoais e profissionais, documentos, carteirinhas, recortes de jornais e revistas com entrevistas delas. E quem são elas? Zuleide Ranieri (narradora), Lea Campos (comentarista de arbitragem), Germana Garille (repórter de campo), Claudete Troiano (repórter e narradora), Leila Silveira (comentarista e repórter de campo), Semíramis Alves (repórter de campo, com passagem pelo programa). Outras também atuaram na rádio, mas não temos seus acervos, como Teresa Leme (motorista) e Regina Aparecida da Silva (operadora de som). 

Entre os principais materiais, há imagens das profissionais entrevistando o Rei Pelé, este que dizia “Ladies First” e as atendia primeiro; entrevistas que revelam que elas possuíam “algumas limitações para desempenhar as suas atividades — não podem, por exemplo, entrar nos vestiários para fazer entrevistas…”; reportagens completas sobre suas vidas pessoais, como no caso de Leila Silveira; e também alguns comentários negativos sobre seu trabalho, como quando foi relatado que Telê Santana teria dito: “Não tem importância, essa mulher saiu diretamente da cozinha para a cabine de rádio” [2]. 

Leila Silveira entrevista Pelé no gramado. Acervo Museu do Futebol | Coleção Leila Silveira | Direitos Reservados

Possuir esses acervos, com esse tipo de documentação é importante, porém catalogar, organizar e identificar esses materiais também fazem parte de um trabalho que facilita a pesquisa de quem irá utilizá-los futuramente. De forma geral, também é essencial para o museu saber quais são os tipos de documentos que estão sob sua salvaguarda e suas principais informações. E esse também foi nosso trabalho, através da catalogação, registramos as principais informações dos materiais que compõem o acervo, tais como: área digitalizada do documento, descrição, data, local, pessoa relacionada, instituição relacionada, evento relacionado, entre outras.

Este trabalho justifica-se por variados motivos, mas principalmente por possuir uma relevância social na tentativa de reconhecer essas mulheres e trazer a visibilidade merecida para seu trabalho. São necessárias pesquisas acadêmicas mais específicas sobre a Rádio Mulher, sendo que, com a existência e qualificação desse acervo, que é tão rico em informações, futuros trabalhos podem surgir sobre a temática. As fontes disponíveis no CRFB podem ajudar a entender melhor essas histórias e contribuir no desvelamento dessa invisibilidade. Por isso, caso tenha interesse em conhecer mais sobre o acervo da Rádio Mulher para pesquisas, entre em contato com o CRFB (crfb@museudofutebol.org.br).

Ademais, como forma de resultado do Edital, foi produzido um roteiro para podcast sobre a história da Rádio Mulher, centrando as atenções em algumas trajetórias, fazendo recorte de raça e levantando questionamentos importantes acerca desse programa.

Foram diversas reuniões e trocas com a Comissão do Edital Jovens Pesquisadores/as durante esse tempo. Em setembro deste ano, no 4º Simpósio Internacional de Estudos sobre Futebol, ocorrido em São Paulo, tivemos a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente, além de apresentarmos nossas pesquisas e ter contato com trabalhos de pesquisa maravilhosos.

Para nós, Natália e Taiane, esses oito meses foram uma experiência profissional incrível que levaremos para vida, não apenas por ter sido realizada no Museu do Futebol, mas também por mostrar a relevância da pesquisa científica, de descobrir e contar histórias. É preciso registrar e reconhecer: duas meninas negras do interior de seus Estados puderam através de seus trabalhos demonstrar e demarcar seu lugar enquanto pesquisadoras das mulheres no futebol. E isso é muito potente, encorajador, inspirador.

Notas

[1] Os trechos aqui transcritos passaram por uma sutil edição, com o intuito de tornar a leitura fluida e mais agradável. Para consultar as transcrições originais, entrar em contato com o CRFB (crfb@museudofutebol.org.br).

[2] Antônio F.B. Marcello. Voz fina no jogo bruto. Acervo Museu do Futebol | Coleção Leila Silveira | Direitos Reservados.

Natália Silva e Taiane Anhanha Lima

Jovens pesquisadoras do Centro de Referência do Futebol Brasileiro

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